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O condutor e fundador da NAO, Michael Ibrahim, à direita, conduz a orquestra e alunos do coral do programa Construindo pontes através da música em 31 de maio, no Detroit Music Hall abaixo, que foi inaugurado em 1928 e é agora sede da NAO. |
Às vezes, a música pode mudar uma vida, ou neste caso, 20 vidas. No dia 31 de Maio, no Music Hall Center for the Performing Arts de Detroit, Michigan, perante uma casa cheia à espera do concerto anual da National Arab Orchestra (NAO), o diretor musical Michael Ibrahim subiu ao palco para fazer um anúncio. No último outono, explicou ele, a orquestra foi premiada com uma bolsa da John S. and James L. Knight Foundation para iniciar uma programa extracurricular chamado Construindo pontes através da música (Building Bridges through Music). O objetivo do programa, acrescentou, é o de ensinar música árabe em escolas públicas que atendem bairros de baixa renda.
sta noite vocês poderão ouvir o resultado deste programa inaugural com estes belos jovens estudantes da Woodward Academy", disse Ibrahim, voltando-se para o seu coral: vinte alunos da quarta a oitava série de pé, compenetrados, em degraus atrás dos músicos. A maioria nunca se apresentou em palco algum, muito menos cantou com uma orquestra profissional. Ibrahim então ergueu a sua batuta e os estudantes explodiram em uma interpretação espirituosa de "Zuruni", uma balada clássica do Líbano, a qual cantaram totalmente em árabe. A plateia irrompeu em aplausos e ovacionou os alunos de pé durante a apresentação. Para o segundo número, eles cantaram o hit contemporâneo de Pharell Williams "Happy" com um arranjo de Ibrahim para instrumentos árabes, e com coreografias de gestos e dança dos próprios estudantes.
"Eu estava prestes a chorar quando eles cantaram," recorda Sachi Yoshimoto, uma violinista baseada em Los Angeles que tem se apresentado com a NAO desde 2012. "O desempenho deles foi uma fonte de inspiração e tocou a todos na plateia, bem como à orquestra." Observando a sua própria descendência japonesa, ela acrescentou que "presenciar crianças afro-americanas cantando com habilidade e alegria 'Zuruni' me fez sentir orgulhosa por estudar música árabe e manter a herança viva sendo uma artista não-árabe. Este tipo de intercâmbio cultural é precisamente o motivo pelo qual entrei na orquestra".
O percussionista Sam Parsons considera que a performance dinâmica "foi uma dessas experiências que definem as pessoas". Músico de jazz profissional, ele vem se apresentando com a NAO desde 2011, quando ainda era um estudante da University of Michigan. "Quando os alunos da Woodward Academy entraram no palco, isso reacendeu o sentimento eletrizante exato que eu senti as primeiras vezes que toquei com a orquestra", disse. "Eles foram sensacionais".
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"Era o meu objetivo desde o início ter uma orquestra profissional em tempo integral e também construir uma escola para a música árabe", disse Ibrahim, abaixo. Entre três cantores no programa da NAO de 31 de Maio estava Aboud Agha, acima, que se apresentou pela primeira vez quando adolescente, na Síria. |
As histórias por trás do programa Construindo pontes através da música e da própria NAO tiveram início com Michael Ibrahim. Um sírio-americano nascido e criado em Sterling Heights, em Michigan, Ibrahim, de 30 anos, começou a estudar a ‘ud, ou alaúde árabe, aos 10 anos, e logo descobriu uma paixão pela música clássica árabe. Em 2009, ainda estudante da Eastern Michigan University, ele formou o seu primeiro conjunto, um takht,, ou um grupo de câmara tradicional árabe, com sete músicos estudantes tocando o ’ud, violino, qanun, riqq e nay (cítara árabe, pandeiro, e flauta respectivamente). Naquele mesmo ano, ele deu início à Michigan Arab Orchestra, que em 2011 incluiu não só o takht, mas também um coral da comunidade árabe fundado por ele. Victor Ghannam, um conhecido músico árabe-americano, que compõe com frequência músicas para televisão, toca com Ibrahim desde o começo. "Tocou direto o meu coração", diz Ghannam. "O que pode ser melhor do que preservar a nossa herança?"
Em Janeiro, a orquestra foi renomeada para National Arab Orchestra para refletir tanto o foco no ensino como a sua presença nacional. No dia 24 de Janeiro, a orquestra realizou a sua estreia sob o novo nome no Atlanta Symphony Hall na Geórgia. A violinista Katie van Dusen considera o novo nome como "uma melhor reflexão da nossa identidade atual, porque os músicos vêm de todo o país e, às vezes, de outros países para unir-se a nós".
Um deles, o compositor e violonista Roberto Riggio baseado em Austin, Texas, diz que a orquestra lhe dá a oportunidade de crescer como um praticante da música árabe e, ao mesmo tempo, "também é muito bom ver que a NAO está fazendo um esforço intencional para avançar e declarar o intercâmbio cultural um objetivo explícito".
"Quando comecei esta orquestra há cinco anos, era o meu objetivo desde o início ter uma orquestra profissional em tempo integral e também construir uma escola para a música árabe", explica Ibrahim. "Nós não temos isso, nós precisamos disso e podemos manter. Se as artes árabes e nossa cultura vão ser salvas", acrescenta, isso acontecerá aqui" (querendo dizer nos Estados Unidos). "Precisamos preservar esta música e trazê-la à vida novamente". Como o músico talentoso que é, e com uma crescente reputação como diretor musical inovador, foi fácil para Ibrahim atrair músicos qualificados, diversificados e apaixonados; no entanto, ele admite que foi difícil alcançar o tom certo quanto à elaboração e o financiamento de um programa educativo. "Músicos normalmente não são bons nos negócios", confessa ele.
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"É muito bom ver que a NAO está fazendo um esforço intencional para declarar o intercâmbio cultural um propósito explícito", diz o violinista e compositor Roberto Riggio, que viaja de Austin, Texas, para tocar com a NAO. |
É onde entra Moose Scheib, um jovem empresário libanês-americano de 34 anos, baseado na cidade vizinha de Dearborn. Formado pela Columbia University Law School, Scheib fundou a Mizna Entertainment, que em 2007 produziu os primeiros shows de comédia árabe-americanos em Michigan. Quando a sua família imigrou no final dos anos 1980, Scheib não ouvia muitas músicas clássicas árabes até assistir pela primeira vez o concerto da Michigan Arab Orchestra. Então, ele disse que se apaixonou.
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"Eu gosto de conectar pessoas. Eu sou um construtor de pontes por natureza", disse Moose Scheib, que liderou a incorporação da NAO. "A música é uma forma importante de se conectar". |
"Eu gosto de conectar pessoas. Eu sou um construtor de pontes por natureza", enfatizou Scheib. "A música é uma forma importante de se conectar. Se eu tenho de trabalhar em algo e colocar meus talentos em uso, eu quero que seja em algo que eu possa passar não só à minha filha, mas também para outras crianças e para as gerações que virão", acrescenta ele.
Deixando a música para Ibrahim, Scheib estabeleceu legalmente a incorporação, expandiu o conselho administrativo e encontrou uma sede para a orquestra. Como Detroit possui uma das maiores e mais diversas comunidades árabes-americanas no país, Scheib foi se aconselhar com Vince Paul, presidente e diretor artístico do Detroit Music Hall. Mas, ao invés de dar conselhos, Paul simplesmente convidou a NAO a se tornar sua orquestra residente.
"Eu queria que este fosse um teatro do povo", diz Paul, que se tornou diretor do Detroit Music Hall em 2006. Dada a extraordinária diversidade da cidade, ele acrescenta, "eu queria que as pessoas pensassem que obviamente o espaço possuiria uma orquestra árabe residente". As aspirações educacionais da orquestra se encaixaram naturalmente com a filosofia própria de Paul, e também foram aliadas de seu desejo de aliviar a escassez de programas musicais nas escolas públicas de Detroit.
Segundo Scheib, cerca de 70% das escolas no núcleo urbano de Detroit não possui professores de música. "O fato de as crianças não poderem ser expostas à música em uma cidade conhecida como a casa da Motown é simplesmente terrível!" exclamou. "As artes são uma parte integral do ser humano e de se conectar com outras pessoas, especialmente quando você não fala o idioma delas". No início do ano passado, Ibrahim, Scheib e o membro do conselho da NAO, James Cline, começaram a reunir ideias sobre como iniciar um programa de ensino da musica árabe extracurricular, e mais tarde no mesmo ano, com base em uma proposta liderada pela violinista Katie van Dusen, a NAO recebeu um bolsa de US$ 100 mil da iniciativa Knight Arts Challenge. "O programa Construindo pontes através da música foi onde começamos", disse Ibrahim. "É como colocar o primeiro tijolo".
Quando a diretora do programa extracurricular da Woodward Academy, Marsae Mitchell, ficou sabendo sobre o programa Construindo pontes através da música, ela ficou ansiosa em ser a sua primeira anfitriã. A Woodward, ela explica, é um escola "Título I (Title I)", o que significa que todos os seus alunos vêm de famílias que vivem no ou abaixo do nível de pobreza oficial. O patrocínio de programas extracurriculares é de escasso a inexistente.
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No início de maio, semanas antes de sua apresentação, a baixista da NAO Maggie Hasspacher passa a limpo a agenda da tarde. |
"Eu gosto de ver as crianças tendo a oportunidade de vivenciar outra cultura, principalmente sabendo que muitas delas não têm sequer a oportunidade de sair de seus bairros em Detroit", comenta Mitchell, formada em artes cênicas. "Vê-los aprender um idioma diferente e aprender sobre diferentes instrumentos musicais é incrível."
Ela observa que, mesmo nas áreas mais diversificadas de Detroit, a maioria de seus alunos nunca conheceu ninguém de descendência árabe. Ela ri ao lembrar que uma das primeiras perguntas das crianças a Ibrahim foi se ele já havia comido no Burger King, e ficaram surpresos quando ele respondeu que sim.
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Ibrahim acompanha o ensaio da balada árabe "Zuruni". |
A partir de outubro, com vinte alunos da quarta a oitava série, selecionados entre o corpo discente de 700 alunos da Woodward, o programa se reuniu semanalmente nas aulas ministradas por Ibrahim utilizando um currículo criado pela baixista da NAO, Maggie Hasspacher. Foi difícil no começo, diz Mitchell, que também serviu de assistente nas aulas e supervisionou os ensaios semanais adicionais. "Os alunos não estavam entusiasmados em cantar em uma língua que eles não compreendiam, ou sendo expostos a uma cultura a qual eles não estavam habituados", disse ela. Alguns dos pais também estavam ansiosos, incertos sobre o valor do programa.
Segundo Hasspacher, Ibrahim também precisava de tempo para se ajustar. "Ele nunca havia lecionado em uma escola do centro da cidade e não tinha ideia de onde estava pisando," ela observa com uma risada, acrescentando que ele nunca havia ensinado crianças antes. Ibrahim concorda. "Eles não sabiam cantar, muito menos falar outro idioma, e nem conheciam ninguém de fora do seu próprio círculo," disse ele. Em Janeiro, Hasspacher passou a prestar apoio como professora auxiliar, e ela e Ibrahim criaram juntos um currículo integrando a música árabe e ocidental como uma forma de intercâmbio cultural nos dois sentidos.
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Khalil Cross cumprimentando Ibrahim no fim da aula. |
Todas as semanas, os alunos praticaram as letras árabes de "Zuruni", aprenderam algumas palavras básicas em árabe e como reconhecer algumas notas musicais. Ibrahim introduziu-os ao 'ud, o qanun e o nay; ele os expôs à sua própria história e cultura. Em meados de maio, os alunos já sabiam todas as palavras. Eles estavam prontos.
Cheyenne Williams e Jaya Pullen, ambas na sétima série, dizem ter gostado muito da aula e que voltariam a fazê-la se pudessem. Cheyenne planeja se formar em educação musical na faculdade, e gostou de poder cantar todas as semanas. "Foi realmente interessante cantar em um novo idioma, e me faz querer saber mais sobre a língua e a cultura árabe", acrescentou.
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A diretora de programas extracurriculares, Marsae Mitchell, ajuda a conduzir os ensaios da coreografia para a música "Happy". |
"Há algo sobre a música que derruba as barreiras", observa o superintendente William Jackson da Woodward Academy, que elogia o programa que "excedeu as minhas expectativas." A arte, disse ele, "aciona o elemento do lado direito do cérebro. Em vez de colocar nossas crianças para dormir, vamos expô-los a coisas que os animem, tal como a música e a dança." De fato, conforme a noite da apresentação se aproximava, a pesquisa demonstrando os resultados das provas dos alunos que participaram do programa Construindo pontes através da música mostraram uma melhora global nas notas de matemática e leitura.
Na noite do concerto, Jackson, Mitchell e muitos outros pais, professores e funcionários da Woodward estiveram presentes. "As crianças realmente me deixaram orgulhosa" exclama Mitchell. "Não só o concerto foi fabuloso, como cantaram lindamente e foram maravilhosos representantes de Woodward Academy". O que a agradou tanto quanto a performance dos alunos foi a mudança em suas atitudes. "No início do programa, eles não eram de todo interessados em cantar em árabe," relembrou, "e agora eles estão falando sobre querer voltar e cantar mais uma vez".
"Eu adorei o senso de realização e alegria que vi nas crianças ao se apresentarem," comentou van Dusen. "Eu estava sentada em minha cadeira no palco desejando que todos pudessem compreender o quão incrível é termos um coro cheio de crianças afro-americanas se apresentando com uma orquestra árabe para este público no centro de Detroit. Aqui está um retrato autêntico e significativo de Detroit e sua cultura musical apresentado de uma forma que facilita as relações entre fronteiras culturais".
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"Foi realmente interessante cantar em um novo idioma, e me faz querer saber mais sobre a língua e a cultura árabe", disse a aluna da sétima série Cheyenne Williams. |
"O programa foi um grande sucesso e abriu uma fração do mundo aos [alunos]", disse Ibrahim. "No início, eles começaram esperneando", lembra ele. Eles achavam que o árabe "era estranho por se tratar de uma cultura diferente e algo que eles não haviam experimentado antes. Depois de se apresentarem no concerto, todos quiseram fazê-lo novamente. Eles amaram e realmente se sentiram muito bem sobre si próprios após estarem no palco".
Os alunos não foram os únicos que se sentiram realizados. Refletindo sobre sua própria juventude, Ibrahim diz que "havia uma série de pessoas me dizendo "você não pode, você não vai, você não deve". A filosofia que me ajudou a conseguir sair da minha rotina é a que tentei ensinar para as crianças a cada semana. Eu disse a eles, "eu comecei exatamente como vocês e sou a prova de que vocês podem fazer qualquer coisa que quiserem, desde que estejam dispostos a trabalhar duro por isso". E isso, acredita ele, é o melhor tom que qualquer um deles poderia atingir.
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Piney Kesting (pmkhandly@hotmail.com) é uma escritora freelance situada em Boston e consultora especializada no Oriente Médio. Ela está atualmente trabalhando em um livro sobre mulheres empreendedoras do Oriente Médio, Paquistão e Turquia. |
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Ryan Garza (ryan@popmodphoto.com) é fotógrafo da Detroit Free Press e vencedor do 2013 Michigan Press Photographer of the Year (prêmio fotógrafo de imprensa do ano de Michigan de 2013). |