Volume 65, Número 6Novembro/Dezembro de 2014

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Cruzamentos e diásporas: Mil anos de culinária islâmica – escrito por Rachel Laudan
Uma crônica ilustrada de receitas chamada Livro das delícias (Book of Delights) do final da década de 1400, proveniente de Mandu, Índia, mostra o sultão Ghiyath al-Din recebendo pratos preparados por sua cozinha real. Posteriormente, os mogóis criaram sua culinária a partir de uma confluência de elementos persas, turcos e indianos.
BRITISH LIBRARY / BRIDGEMAN IMAGES (DETALHE)
Uma crônica ilustrada de receitas chamada Livro das delícias (Book of Delights) do final da década de 1400, proveniente de Mandu, Índia, mostra o sultão Ghiyath al-Din recebendo pratos preparados por sua cozinha real. Posteriormente, os mogóis criaram sua culinária a partir de uma confluência de elementos persas, turcos e indianos. 

agdá era o "cruzamento do universo", disse o primeiro califa do Império abássida ao fundar uma cidade circular em 762. E assim era naquela época: cinco mil quilômetros (três mil milhas) até as fronteiras da China no oriente, e outros cinco mil até os pilares de Gibraltar, à entrada do Atlântico a oeste. Alguns séculos mais tarde, uma alta gastronomia havia sido criada em Bagdá, e seguindo as Rotas da Seda entrelaçadas e as rotas marítimas do oceano Índico e do mar Mediterrâneo, conquistadores, mercadores, peregrinos, ordens religiosas e cozinheiros haviam se espalhado por todo esse espaço hemisférico. Em todos os lugares, a culinária consistia em avanços da agricultura e no preparo da alimentação, e era apreciada pela elite das cidades mais prósperas. Nunca estática, nunca homogênea, sempre absorvendo e contribuindo com outras tradições culinárias, a primeira alta gastronomia islâmica recebeu coerência por uma filosofia culinária que integrava a crença religiosa com política e teorias relativas à alimentação. Quatro imagens da globalização da culinária ao longo dos últimos mil anos mostram como ela se alastrou em ondas a partir de seu núcleo, recebendo influências e contribuindo com outras cozinhas dos habitantes de cidades, nômades e pessoas de diferentes religiões até a atualidade, quando suas ondulações chegaram a quase todos os cantos do planeta habitado.

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À esquerda: TODD COLEMAN; À DIREITA: IGNACIO URQUIZA
Um dos muitos pratos que evocam o alcance histórico da culinária islâmica é o tharid, ou pão umedecido com caldo (à esquerda, mostrado aqui em uma variante moderna com batatas). Por tradição, um dos pratos favoritos do Profeta Maomé tornou-se parte da primeira alta gastronomia islâmica na cidade de Bagdá e também na península Ibérica muçulmana (al-Andalus), onde os cristãos substituíram o caldo por um xarope e chamaram o prato de capirotada para o Novo Mundo, onde continua popular no México até hoje (à direita).

1000 ec: A alta gastronomia do califado abássida

A primeira alta gastronomia islâmica, a do califado, se estabeleceu por volta do ano 1000. Para aperfeiçoar a culinária simples dos árabes, baseada em tâmaras, leite e cevada, os cozinheiros da corte de Bagdá se beneficiaram de uma tradição contínua das altas gastronomias que remontam a uma sucessão de cozinhas imperiais persas até as da antiga Mesopotâmia. Seus médicos se basearam nas mais avançadas teorias de alimentação, as de Galeno do Império Romano, e de Caraka e Susruta da Índia. Comer de forma saudável significava comer algo delicioso. As altas gastronomias eram corretas e apropriadas para os governantes que cuidavam de seus reinos assim como os jardineiros que cuidavam de seus domínios. Acreditava-se que a comida – e também os demais prazeres mundanos, como bebida, roupas, sexo, perfumes e sons – era uma antecipação do Paraíso. Mas a comida era o maior de todos eles, afirmava o autor que, no final do século XIII, compilou uma coleção de receitas agora conhecidas como o livro de receitas de Bagdá. Afinal, sem ela, nenhum dos outros prazeres poderia ser desfrutado, dizia. 

A alta gastronomia era apreciada em Damasco, Alepo, Cairo, Palermo na Sicília, e em Córdoba, Sevilha e Granada, na Espanha – todas elas regiões muçulmanas por volta do ano 1000. Ao final do século X, o primeiro livro de receitas sobrevivente em árabe, o Livro de pratos (Kitab al-Tabikh), havia sido compilado por Ibn Sayyan al-Warraq como um registro da culinária do califa de Bagdá e seus cortesãos. Outros cinco livros permanecem desde o século XIII, e ainda outros são atestados, como o lugar com mais livros de receita que qualquer outro do mundo naquela época.

Nas cidades, moinhos moem o trigo em farinha. Refinarias de açúcar evaporavam o suco da cana-de-açúcar, planta introduzida pela Índia, para produzir vários tipos de açúcar. Novos métodos de destilação criaram essências aromáticas de pétalas de rosas e flores de laranjeira. O azeite era extraído de azeitonas, bem como das sementes de gergelim e de papoula. A produção de ovos, salsichas e a preparação de carne em conserva, manteiga (samn), queijo, pão e doces estava toda nas mãos de especialistas qualificados. 

No alto à esquerda, em sentido horário: Um detalhe de uma página de esboços do século XV de um acampamento nômade mongol mostra um homem cozinhando; governantes mongóis adotaram em grande parte a cozinha muçulmana, criando uma espécie de diplomacia culinária pragmática e saborosa nas terras que alcançavam. Três detalhes do Livro das delícias (Book of Delights), do sultão Ghiyath al-Dinde, ilustram outras cenas: cozinheiros picando a carne, e cozinheiras utilizando uma variedade de utensílios e colocando comida em um prato.
No alto à esquerda: topkapi palace museum / bridgeman images; british library / bridgeman images (3) (detalhes)
No alto à esquerda, em sentido horário: Um detalhe de uma página de esboços do século XV de um acampamento nômade mongol mostra um homem cozinhando; governantes mongóis adotaram em grande parte a cozinha muçulmana, criando uma espécie de "diplomacia culinária" pragmática e saborosa nas terras que alcançavam. Três detalhes do Livro das delícias do sultão Ghiyath al-Dinde, ilustram outras cenas: cozinheiros picando a carne, e cozinheiras utilizando uma variedade de utensílios e colocando comida em um prato.

Nos jardins geometricamente plantados e irrigados, cultivavam-se ervas como hortelã, coentro, salsa, manjericão e estragão; frutas como tâmaras, romãs, uvas e diversas variedades de cítricos; nozes como pistache e amêndoas; e produtos hortícolas, incluindo cenoura, espinafre, beterraba e berinjela. Mais longe, os agricultores trabalhavam em campos de trigo e cana-de-açúcar. Onde ainda não floresciam, tâmaras, romãs, arroz e açúcar eram introduzidos, se o clima permitisse, juntamente com sistemas de irrigação e técnicas para processá-los. 

Mercadorias exóticas eram trazidas por camelos ou barcos. O mel das florestas ao norte era carregado ao sul por vikings que retornavam com especiarias. Temperos como canela, sementes do feno-grego, açafrão, assafoetida e pimenta-do-reino da Índia e do sudeste da Ásia. Indo além dos limites anteriores, os comerciantes navegavam a costa leste da África até Madagascar, estabelecendo-se nas ilhas de Pemba e Zanzibar.

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National library of austria / alnari / bridgeman images
O fino traje "oriental" e um tanto extravagante do homem à esquerda nesta ilustração italiana do século XIV, do cultivo da cana-de-açúcar, sugere o quanto os europeus consumiam o açúcar como produto de luxo das terras islâmicas até os anos 1600.

O pão de trigo cozido no forno de barro, acima ou abaixo do nível do solo, chamado tannur, mais conhecido hoje em dia pelo nome cognato "tandoori", era o alimento básico da cozinha islâmica. Por tradição, o tharid – pão umedecido com caldo e camadas de carne – era o prato favorito do Profeta. A farinha era usada de várias outras maneiras: misturada com água e utilizada fresca ou seca como massa; enrolada como massa para ser recheada com carne; misturada com água para fazer uma bebida refrescante; ou, no Norte de África e em al-Andalus, enrolada de forma grosseira em pequenas bolas que se tornaram conhecidas como cuscuz. 

Molhos ricos acompanhavam assados ou guisados de carneiro, cordeiro, cabrito, caça, aves ou, em al-Andalus, de coelho. Normalmente, eles eram amargos ou agridoces, aromatizados com temperos, ervas e essências, temperados com murri (condimento feito de cevada fermentada), coloridos com curcuma e açafrão, sementes de romã e espinafres, ou cobertos com cristais de açúcar que brilhavam na luz. O Sikbaj, que aparece em todos os livros de receita, era algum tipo de carne (e, mais tarde, também peixe) azedada com vinagre; harisa (não deve ser confundido com a mistura marroquina de temperos) era um purê de grãos e carne; e em al-Andalus, almôndegas e ensopados de carnes mistas eram populares. De maior prestígio era o frango assado sobre um pudim que absorvia a rica gordura. 

Pratos doces eram feitos com mel, em que seu sabor era adicionado ao prato. Onde seu aroma e cor não fossem necessários, o açúcar era utilizado, retendo o sabor das frutas em conserva e deixando brilhar a tonalidade rosa, verde ou laranja das frutas ou sherbets de frutas, e mantendo bebidas doces de amido ou de amendoins, brancas e resplandecentes. Tudo poderia ser perfumado com pétalas de rosa e flores de laranjeira. Confeiteiros descobriram que, quando fervido por diferentes períodos e então resfriado, o açúcar se tornava sucessivamente claro e maleável, depois transparente e duro, e, em seguida, um caramelo marrom aromático, abrindo uma infinidade de possibilidades culinárias. O livro de Al-Warraq incluía receitas para 50 doces, incluindo o açúcar puxado, marzipã em massa (lanzinaj), frituras embebidas em calda ou macarrão branco fino e panquecas recheadas com nozes e creme de leite. Compotas, geleias e sucos de frutas fervidos (rubb) e xaropes (julab) estenderam a fronteira entre a culinária e a medicina, assim como os refrescos adoçados de sucos de frutas diluídas (sherbet) e amidos ou nozes suspensos em água (sawiq), mais tarde chamados de horchata em espanhol. Preparadas em grandes cozinhas, as elegantes refeições eram feitas pelos califas e outros dignitários nos jardins cobertos por sombras e onde os canais de água irrigavam as árvores, flores, frutos e legumes.

1300: Aos confins da Eurásia

Em 1258, os mongóis conquistaram Bagdá e derrubaram a dinastia Abássida, enquanto na península Ibérica os cristãos empurravam de volta o domínio muçulmano para a região meridional de al-Andalus. No entanto, as culinárias islâmicas continuaram a expandir suas esferas de influência. Por volta de 1300, elas se estabeleceram em cidades da Ásia Central como Samarkand, Bukhara e Merv, além dos sultanatos de Déli na Índia, e haviam deixado sua marca no Império Mongol na China e também na Europa cristã. 

Na Índia central, o ilustrado Livro das delícias, escrito no final do século XV, mostra Ghiyath al-Din, sultão de Mandu, em jardins com suas cozinheiras. Receitas para doces recheados (samosa), carnes no espeto, almôndegas macias e sherbets refrescantes competem com outros perfumes e aromáticos, afrodisíacos e remédios. 

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Stockfood / cps
Por volta de 1600, a cozinha otomana na Turquia contribuiu com sua preferência pela carne de cordeiro grelhada e carne de carneiro, bem como a nova massa folhada ultrafina (phyllo), enquanto também se baseava em tradições mais antigas, como as dos bolinhos de carne ou produtos de pastelaria. Isso produziu o salgado borek, que permanece popular, em diversas variedades, na cozinha turca atual.  

Na China, um livro de receitas generosamente ilustrado Coisas adequadas e essenciais para as comidas e bebidas do imperador (Proper and Essential Things for the Emperor’s Food and Drink), compilado em 1330 por Hu Szu-hui, médico do imperador no Escritório de Aprovisionamento da família imperial, revela como os mongóis adotaram elementos das altas gastronomias de seu vasto império como uma forma de diplomacia culinária. Os cozinheiros adicionaram um toque islâmico às sopas tradicionais mongóis, engrossando-as com arroz aromático ou grão de bico, ou temperando-as com canela, sementes de feno-grego, açafrão, curcuma, assafoetida, essência de rosas ou pimenta negra, e concluindo com um toque de vinagre. Eles preparavam pratos de macarrão em um molho cremoso de iogurte e alho, semelhantes àqueles ainda preparados na Turquia, e bolinhos de massa recheados, como o borek ainda hoje encontrado no Oriente Médio. Faziam doces e bebidas em estilo islâmico, incluindo socos de frutas, compotas, geleias, julabs e rubbs.

Comerciantes cristãos de Gênova, Barcelona e Veneza negociavam com terras islâmicas e abriram outro caminho pelo qual a culinária perfumada, colorida e picante tornou-se conhecida pela nobreza europeia. Para criar essa cozinha, os mongóis utilizavam os muçulmanos (entre outros povos) para fornecerem à corte tudo o que era necessário. Os muçulmanos moíam a farinha de trigo e óleo, dirigiam as refinarias de açúcar, preparavam bebidas doces e sherbets, e (no khanate persa) trabalhavam nas cozinhas e experimentavam com novas variedades de arroz. A porcelana azul e branca tornou-se um item de exportação, desencadeando uma mania pelo produto em todo o Velho Mundo.  

Diplomatas e cozinheiros transitavam pela série de canatos da China, Ásia Central, Pérsia e Rússia, interligando as cozinhas. Então, em 1368, com seu império chinês ameaçado pela agitação que os rebeldes vinham fomentando há várias décadas, bem como a praga no sudoeste, os mongóis voltaram para as estepes. Na China, a nova dinastia Ming manteve pouco da alta gastronomia mongol, exceto por técnicas para cristalização e adoçamento dos alimentos, embora os muçulmanos, especialmente no noroeste da China, continuassem preparando uma culinária islâmica mais humilde. Ainda que as fronteiras dos impérios mongóis, da Rússia no oeste e em uma grande área através do Irã e da Ásia Central, bolinhos recheados cozidos no vapor ainda demonstrassem a convergência das culinárias islâmica e chinesa na época dos mongóis.  

A oeste, a Europa estava prosperando, as cidades estavam florescendo, e grandes catedrais estavam apontando suas torres para o céu. Teorias relativas à alimentação que incorporavam avanços islâmicos entraram novamente na Europa ao final do século X em Salerno, uma pequena cidade perto de Nápoles que possuía uma escola de medicina famosa, quando Constantino, o africano, convertido do islamismo, traduziu as versões árabes de Galeno. O Regime de saúde salerno (Regime Sanitatis Salernitanum), uma tradução em versos cômicos de um tratado médico árabe do século XI por Ibn Butl de Bagdá, tornou-se amplamente disseminado. As Cruzadas do século XI ofereceram aos europeus vislumbres das glórias da culinária islâmica. Comerciantes de Gênova, Barcelona e Veneza fizeram fortunas negociando com muçulmanos e divulgaram ainda mais os seus pratos. Comerciantes compravam panelas no norte da África e as vendiam no sul da Europa. 

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National library of austria / alnari / bridgeman images; the stapleton collection / bridgeman images
À esquerda: A partir dos anos 1600, elementos otomanos e legumes do Novo Mundo entraram na Europa através dos Bálcãs e da Hungria, e começaram a se propagar pela escala social. À direita: Em Istambul, centro da alta gastronomia otomana, era o complexo de cozinhas no palácio de Topkapi, que empregava até 1.500 especialistas.

A nobreza ansiava pela cozinha perfumada, colorida e temperada. Incertos de onde os temperos se originavam, eles acreditavam vir diretamente paraíso. Embora os cristãos distinguissem sua cozinha através da utilização da carne de porco e da introdução de pratos sem carne para os muitos dias de jejum, eles também adaptaram muito da alta gastronomia islâmica. Na Espanha, o prato de carne e caldo, o tharid, se transformou na capirotada, e na Sicília, a massa seca era preparada e comercializada ao redor da rede Gênova-Barcelona, enquanto o cuscuz permaneceu no cardápio tanto na Sicília como na Espanha. O guisado de carnes mistas, grãos e feijão se transformou no olla podrida (literalmente "panela podre") da Espanha. O Sikbaj tomou uma das duas formas: ou peixe frito muitas vezes banhado subsequentemente em vinagre, ou peixe escalfado (ou frango, coelho ou porco) em uma marinada ácida de vinagre ou laranja (escbeche e ceviche). Massas fritas encharcadas em mel ou polvilhadas com açúcar tornaram-se a família dos buñuelos, beignets e donuts comidos em dias festivos católicos, particularmente antes do jejum da Quaresma. O marzipã tornou-se tão popular que foi reivindicado por diversas cidades, incluindo Toledo e Lübeck. 

1600: Transformações em Terras centrais e no Novo Mundo

Por volta de 1600, a cena culinária mudou mais uma vez. No Oriente Médio e na Índia, povos turcos de origem estepe criaram a culinária dos impérios Otomano, Safávida e Mogol, com base, respectivamente, na Anatólia, Pérsia e Índia. Grande parte do Sudeste Asiático agora era islâmica, assim como as grandes cidades do Sahel Africano – Timbuktu, Gao e Djenné – na fronteira sul do Saara. Os espanhóis e portugueses navegavam através do Atlântico e do Pacífico, estabelecendo impérios nas Américas e postos comerciais no oceano Índico, respectivamente, onde introduziram a sua culinária com seus muitos elementos islâmicos. 

A bebida doce e refrescante, o sherbet, sendo servida ao sultão na imagem do
British library / bridgeman images (detalhe)
A bebida doce e refrescante, o sherbet, sendo servida ao Sultão na imagem do Livro das delícias no detalhe à esquerda, era feita com gelo trazido de montanhas distantes.

 Em 1453, o sultão otomano Maomé II tomou Constantinopla dos cristãos bizantinos. Até o século seguinte, a região contabilizava um milhão de pessoas, mais do que qualquer outra cidade europeia, e o império se estendia pelo norte da África, Egito, Síria, Mesopotâmia, Grécia e os Bálcãs. Nas cozinhas do Palácio de Topkapi, uma equipe incluía até 1.500 especialistas em panificação, sobremesas, halvah, picles e iogurte. 

A herança turca contribuiu com uma variedade complexa de pães, uma predileção por sopas, uma preferência por carne de cordeiro e carneiro, que eram frequentemente grelhadas no espeto, carnes marinadas em iogurte, legumes recheados e bebidas de iogurte. Da tradição mais antiga, estavam os bolinhos de carne ou doces, carne moída temperada, confeitos de açúcar em grande variedade e sherbets. O sal e sabores azedos foram então separados dos doces; menos frutas, menos açúcar e menos vinagre apareceram em pratos salgados; temperos foram utilizados em menor quantidade e o murri desapareceu. O arroz pilau, talvez prenunciado no período mongol, não era uma referência assim como o arroz asiático cozido no vapor, mas um prato elaborado com características próprias. O arroz era lavado, ensopado, muitas vezes salteado, e então fervido, escorrido e cozido no vapor para que os grãos permanecessem separados. Carnes, nozes, frutas secas, legumes e corantes eram frequentemente adicionados antes do cozimento, e o líquido fumegante era possivelmente usado como um caldo enriquecido com gordura. Outras novidades incluíam a massa folhada em camadas, fina como papel, agora conhecida como phyllo, e seus doces e salgados borek associados, baklava e kunafa,, assim como os bolos feitos de semolina (trigo moído grosso) embebidos em calda. Figuras coloridas de açúcar extravagantemente grandes de animais exóticos, como girafas e elefantes ou estruturas como castelos e fontes, foram levadas por portadores ou por carrinhos em ocasiões públicas, símbolos tangíveis da vasta riqueza comandada pelo sultão.  

No século XVI, os cafés se tornaram um local onde os intelectuais jogavam xadrez e falavam de política, apesar dos esforços das autoridades em reprimir o que temiam ser centros de conspiração. O café tornou-se a bebida da porção de língua árabe do Império Otomano: Egito, Síria e Iraque, no leste, Líbia e Argélia no oeste. 

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Bebidas islâmicas com nozes e grãos se tornaram o doce horchata, amplamente apreciado na Espanha e na Nigéria, feito com arroz no México. 
Arturo Pena Romano Medina / thinkstock / getty images; kimberlee reimer / thinkstock / getty images
No alto: "Aguas frescas", hoje populares na América Latina, estão entre seus descendentes mais próximos. Acima: Bebidas islâmicas com nozes e grãos se tornaram o doce horchata, amplamente apreciado na Espanha e na Nigéria, feito com arroz no México. 

Elementos islâmicos e plantas do Novo Mundo entraram na Europa através dos Bálcãs e Hungria. O arroz pilau, o pão pita (lángos), a massa folhada (strudel), bebidas açucaradas e legumes recheados, todos se tornaram comuns na Europa Central. A Hungria turca rapidamente adotou os cafés. Jardineiros búlgaros estabelecidos nas periferias de cidades europeias introduziram novos legumes, como a vagem, cebola, pimentões, pepinos e couve para o povo da cidade. 

Ao leste em Babur, em 1523, um soldado de sorte e de descendência turca, levou seus homens da Ásia Central para conquistar a planície norte da Índia. Em seu apogeu, a dinastia mogol governou cerca de um sétimo da população do mundo. No século XVI, Abu al-Fazl, conselheiro do imperador Akbar e mordomo das cozinhas imperiais, descreveu a alta culinária como parte da administração imperial no Ain-i-Akbari (Constituição de Akbar): o pão sírio naan era um alimento básico, os elaborados pilaus eram adornados com nozes e sementes de romã, e a carne era servida grelhada em espetos, em almôndegas delicadas e em ensopados delicadamente temperados, como o cordeiro korma, que se tornou conhecido coletivamente pelo termo inglês "curry". Foram introduzidos os doces típicos islâmicos, como o macarrão cozido no leite adoçado e a massa frita polvilhada com água de rosas, este último conhecido como gulab jamun. O gelo, colhido de montanhas distantes e mantido em geladeiras engenhosas, era utilizado para esfriar os sherbets ou mesmo transformá-los em sucos gelados. Outras cortes indianas adotaram a culinária mogol, e algumas delas mais tarde penetraram a culinária britânica.

A oeste da Espanha, livros de receitas, como o Libre del coch de Ruperto de Nola, do final do século XV, incluíam receitas e ingredientes derivados do Islã, como o macarrão (agora chamado de fideos), laranjas amargas, peixe frito, escabeche, molhos de amêndoas e confeitos de amêndoas. O livro Arte de cozinhar, fazer bolos, biscoitos e conservas (Arte de Cocina, Pastelería, Bizcochería y Conservería), produzido em 1611 por Francisco Martínez Montino, principal chef de vários reis de Espanha, mais notavelmente de Filipe III, continha várias receitas para almôndegas (albóndigas) e capirotada, e uma para o cuscuz. 

A culinária do Islã com base em açúcar, introduzida na Europa no século XII por um médico conhecido no registro literário como Pseudo-Messue, foi desenvolvida em meados do século XVI por obras como a De Secreti, de Alexis de Piemonte, e o Tratado sobre cosméticos e conservas (Traité des Fardemens et Confitures), de autoria do médico francês e astrólogo Nostradamus. O "sherbet", "doce" e "xarope" – este último, uma outra maneira de traduzir "sherbet" – têm todos raízes árabes. Os confeitos (especiarias enfeitadas com açúcar) e eletuários (pastas de temperos e remédios) foram os precursores distantes dos doces modernos. Freiras criavam a confeitaria em estilo islâmico para vender a clientes ansiosos. Pastas de frutas islâmicas transformaram-se na pasta de marmelo portuguesa e, mais tarde, evoluíram para conservas cítricas como a marmelada.  

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Thomas Allom / the stapleton collection / bridgeman images; imageimage / alamy
O artista inglês Thomas Allom retratou esse café em Istambul (à esquerda) em 1838, época em que o café havia se tornado popular em toda a Europa, inclusive em Viena, onde hoje o Cafe Central (à direita) evoca uma elegância similar.

Nas Américas, as cortes vice-reais espanholas consultavam o livro de receitas de Martínez Montiño. O cuscuz, a partir da receita dele, foi feito pelo menos até o século XIX no México, juntamente com um substituto feito com milho cozido no vapor similar à pamonha. Uma prensa para fazer macarrão foi levada para a fortaleza do mosteiro agostiniano em Yuriria, no que era então a fronteira e é hoje o centro do México. O arroz pilau e o macarrão cozido em estilo pilau ficaram conhecidos como sopas em pó (sopas das quais toda a água tinha evaporado). Ensopados picantes e as albóndigas permaneceram populares, enquanto a capirotada perdeu suas carnes e tornou-se um prato doce quaresmal. Frutas locais, como goiabas, cherimoias e mamey sapote foram substituídas por pastas de frutas e sherbets. As donas de casa reproduziam as bebidas tranquilizantes de grãos e nozes, agora conhecidas como horchata, com arroz ou uma variedade de alternativas locais. 

A partir do México e da Goa portuguesa, na Índia, freiras introduziram técnicas de confeitaria nas Filipinas e no sul e sudeste da Ásia. Quando missionários jesuítas entraram no Japão, usaram os salgados e muitos dos pratos doces do sul da Europa – e, portanto, do Islã – como atrativos para e evidência de conversão. No Livro de receitas dos bárbaros do sul (Southern Barbarian’s Cookbook), manuscrito japonês compilado no início do século XVII, uma receita para o peixe frito parece que acabaria evoluindo para se tornar o tempura, bem como os doces, que ficaram conhecidos em japonês como kompeito do português comfeito (confeito).

De volta à Europa, cozinheiros do sul, como o "conselheiro chefe" português para as damas-de-espera que queriam fazer "pratos delicados" na corte da rainha Elizabeth I da Inglaterra, introduziram no norte uma confeitaria elaborada. Trabalho caros feitos com açúcar, alguns deles projetados para se parecerem com alimentos salgados, como os presuntos de marzipã, a pasta açucarada de bacon e ovos de geleia amarela e branca tornaram-se moda, servidos em "casas de banquetes" nos jardins das mansões nobres.  

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Chester beatty library / bridgeman images; geraint lewis / alamy
A agitação de outro café otomano (à esquerda) ecoa nas franquias mundiais de café atuais (à direita), que carregam não apenas a bebida, mas também as associações culturais originais aos intelectuais urbanos.

Outros elementos islâmicos assumiram vida própria. O peixe frito preservado em vinagre aparece na edição de 1796 de A arte da culinária (Art of Cookery), de Hannah Glasse, popular na Inglaterra e nos EUA. Quanto aos sucos gelatinosos que envolviam o peixe frio em vinagre, eles entraram nas línguas europeias como aspic, ainda a palavra utilizada para uma gelatina saborosa utilizada para encerrar os pratos frios na alta gastronomia francesa. E julep, que os ingleses haviam usado para um xarope medicinal desde a Idade Média, tornou-se o "mint (hortelã) julep" do sul-americano.

Elementos mais recentes também apareceram. No século XVIII, os fornecedores de café, muitas vezes equipados com trajes turcos, ofereciam os seus produtos, e os cafés tornaram-se importantes centros de comércio e política. Viajantes ao Oriente Médio voltavam com pacotes do novo doce à base de amido que eles chamavam de delícia turca. 

2000: Cozinhas islâmicas em um mundo globalizado

Nos séculos XIX e XX, a expansão dos impérios Britânico, Francês e Russo, a contração dos impérios Otomano e Mogol, e o rompimento subsequente dos impérios europeus reescreveram as fronteiras políticas em todas as terras islâmicas mais de uma vez. A globalização da alta gastronomia francesa entre a elite internacional e da culinária anglo mediana entre as populações urbanas de classe média – esta muito influenciada pelos novos princípios de economia doméstica – foi profundamente sentida.  

À medida que novas nações eram criadas, muitas famílias adquiriam fogões a gás ou elétricos e, mais tarde, aparelhos elétricos que reduziram o tempo e trabalho necessários para o preparo de pratos complexos. Embora muitos ainda comessem (e comam) culinárias humildes que dependem do pão para a maioria de suas calorias, as gastronomias médias estavam atravessando um crescimento sem precedentes. Os muçulmanos continuaram unidos pelo Ramadã e pelo Hajj, ou peregrinação à Meca. Jornais, revistas e programas de rádio passaram a oferecer sugestões de pratos para o Ramadã e outros festivais importantes. Transportes aéreos de baixo custo tornaram o Hajj mais fácil. Novos livros de receitas foram escritos, assinalando pratos que haviam sido comuns em toda a região mais vasta como mais estritamente "nacionais", e a introdução de pratos ocidentais, bem como a escrita de receitas para refletir a precisão científica defendida pelo movimento da economia doméstica, como o Ev Kadini (Dona de casa), de Ayşe Fahriye de 1882 na Turquia, ou o Usul al-Tahi (Princípios da culinária), do início dos anos 1940 no Egito, de Nazira Nikola e Bahiya Othman, que publicou sua 18.ª edição em 1988. 

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CARLOS MORA / ALAMY; FOTOMATON / ALAMY; HAYTHAM PICTURES / ALAMY
O prato abássida de peixe avinagrado sikbaj continuou evoluindo através da Espanha medieval até os tempos modernos, onde aparece em variedades tão distintas como o cebiche (no alto à esquerda), o prato típico do Peru e também popular em toda a América Latina, e o peixe com batatas fritas (no alto à direita), o prato característico da classe operária britânica. Ambos são exemplos da alta gastronomia adaptada aos gostos e recursos locais para se tornarem pratos populares e comumente disponíveis na culinária mediana. Acima: Por outro lado, o aspic mantém o status de haute cuisine (alta gastronomia). Seu nome provavelmente evoluiu a partir da palavra árabe para a geleia que se estabelece ao redor de peixes avinagrados, e hoje é uma gelatina com sabor usada para revestir o peixe ou a carne na culinária francesa.  

Na última década de 80, a ênfase se deslocou para a preservação dos pratos tradicionais. Em 1980, um grupo de cozinheiros profissionais e donas de casa foram os autores do Qamus al-Tabkh al-Sahih, oferecendo receitas tradicionais da região. Outros se seguiram, como o Dalil al-Tabkh wa’l-Aghdhiya (Guia da culinária iraquiana e pratos de Bagdá), de Naziha Adib e Firdaws al-Mukhtar, de 1990, e o Min Fann al-Tabkh al-Sa’di de Zubayda Mawsili, Safiyya al-Sulayman e Samiyya al-Harakan, criado para preservar a cozinha tradicional saudita em face de um grande fluxo de pratos estrangeiros. Da mesma forma, onde uma vez pareceu que a maré de lanchonetes varreria tudo ao seu redor, novas alternativas para os alimentos tradicionais apareceram, e as confeitarias elegantes se mantiveram.

Onde, no início da década de 1980, parecia que uma onda de lanchonetes se espalharia por todos os lados, surgiram novas alternativas tradicionais islâmicas, árabes, do Oriente Médio, turcas, persas e outros alimentos com raízes islâmicas. Mais longe, cozinhas da América Latina ainda mostram sinais da culinária medieval de al-Andalus em seu arroz, suas bebidas de frutas, seus doces e ensopados picantes complexos, como o mole poblano, agora amplamente considerado um dos pratos típicos do México. As semelhanças entre o arroz mexicano, as albóndigas, o mole poblano e o pilaus indiano, almôndegas e molhos são sinais claros que apontam para raízes comuns.  

Influências seculares continuam em outras partes do mundo, muitas vezes não reconhecidas. No final do século XIX, o descendente distante da versão frita do sikbaj tornou-se o peixe com batatas fritas que alimentou as classes trabalhadoras britânicas e veio a ser considerado pelo resto do mundo como o prato nacional da Grã-Bretanha. No século XX, a versão avinagrada do cebiche tornou-se o prato típico do Peru. A bebida engrossada com amido ou nozes que permanece popular entre os espanhóis em horchaterias na Espanha, é preparada em domicílios na Nigéria e é popular em toda a América Latina. Cafés, agora frequentemente dirigidos como franquias de marcas globais, continuam sendo lugares de discussões políticas e econômicas desde o Japão até o Brasil, e em todos os lugares eles carregam uma conotação que os vincula às suas raízes entre os intelectuais.

 Migrações na virada do século XX e mais recentemente adicionaram pratos islâmicos mais novos àqueles medievais mais antigos. Bancas de rua vendendo carne em espetos rotativos, servida com pão e molho de iogurte são abundantes na Europa como döner kebab e são geralmente associadas ao Oriente Médio, enquanto no México, sem o molho de iogurte, elas se tornaram conhecidas como tacos do pastor (tacos al pastor). Os kebabs em espeto e legumes recheados carregam ambos a mesma mensagem, assim como a delícia turca, a baklava, e a proliferação da indústria de tâmaras. O cuscuz tornou-se uma referência na França; o iogurte, em forma adoçada, tornou-se padrão no café da manhã ou lanche na Europa e nas Américas.

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KEVIN BUBRISKI / SAWDIA; STOCKFOOD / LIP
Influências islâmicas globais saborosas aparecem também em mesas tão distantes como as de Puebla, no México, famosas por seu molho mole (à esquerda) e outros na Índia – e restaurantes em todo o mundo –, país onde o frango ao curry é um dos pratos mais populares, derivado do estilo da culinária mogol cujas raízes remontam à Pérsia e a Bagdá.

Na Europa e nas Américas, restaurantes apresentam alimentos libaneses, persas, mediterrâneos ou "indianos" (onde indiano deve mais propriamente se referir ao subcontinente, e não à nação) com pratos da tradição islâmica. Na China, onde os muçulmanos, embora encontrados em todas as regiões, estão agrupados na região noroeste, migrantes para outras cidades oferecem barracas de ambulantes que vendem pratos de macarrão. Livros de receitas em diversas línguas, muitas vezes escritos por imigrantes, ensinam aos leitores como preparar comidas típicas árabes e do Oriente Médio, Turquia, Pérsia, África do Norte e mogol – ou ao menos uma versão que os autores acreditam que irá apelar para o seu público.  

Na década de 1930, Maxime Rodinson, Daub Chelebi e AJ Arberry dirigiram a primeira atenção acadêmica séria para as culinárias medievais islâmicas. Desde então, estudiosos traçaram as origens e o desenvolvimento das culinárias islâmicas, reimpressas em livros de receitas em árabe, traduzidas para o inglês e espanhol, e ofereceram versões modernas de receitas que remontam aos tempos medievais. É graças a esses estudiosos, e a evidências do interesse público evocado pela longa história das cozinhas islâmicas, que é agora possível escrever esta breve visão geral das cozinhas islâmicas e de seu papel global. E reconhecer isto: que o julep hortelã sul-americano e o gulab jamun da Índia; os molhos da Índia mogol e o mole do México; o aspic brilhante da haute cuisine francesa, o cebiche ácido do Peru, e o humilde peixe com batatas fritas da Inglaterra... todos compartilham uma raiz principal de mil anos de idade.  

Rachel Laudan Rachel Laudan (rachel@rachellaudan.com) é professora visitante do Instituto Lozano Long de Estudos Latino-Americanos, na Universidade do Texas em Austin, e autora de Culinária e império: cozinhando na história mundial (Cuisine and Empire: Cooking in World History) (University of California Press, 2013).

 

Este artigo está disponível na página 26 da edição impressa da revista Saudi Aramco World.

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