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Volume 66, Número 1Janeiro/Fevereiro de 2015

In This Issue

Um conto irlandês de fome e o sultão // Escrito por Tom Verde 
Robert French / Bridgeman images
Desde o final do século XII, a cidade de Drogheda, na Irlanda, prosperou com o comércio marítimo. Esta foto das docas do Rio Boyne foi feita em 1885, uma geração após "A Grande Fome" de 1847, que durou até o começo da década de 1850. Se, de fato, três navios turcos trouxeram ajuda alimentar durante esse período, é provável que eles tenham atracado aqui.

A história começa assim: Em 1847, o pior ano da escassez da batata irlandesa, um médico irlandês a serviço do sultão otomano em Istambul suplicou ao soberano para enviar ajuda aos seus compatriotas famintos. Seus apelos fizeram com que o Sultão Abdülmedjid I prometesse 10 mil libras esterlinas. No entanto, ao saber que a Rainha Vitória da Inglaterra estava enviando umas meras 2 mil libras esterlinas, o sultão, por polidez diplomática, reduziu sua doação para mil libras esterlinas. Porém, estava determinado a doar mais e secretamente enviou três navios carregados com grãos para o porto de Drogheda, em County Louth, norte de Dublin. Em sinal de gratidão, a cidade de Drogheda incorporou a estrela e o crescente turco a seu brasão municipal, um símbolo que perdura até hoje, aparecendo até nas camisetas do clube de futebol Drogheda United.

Agora, como muitos contos irlandeses, parte da história é verdadeira e parte dela é lenda. E quanto as outras partes? Lisonja.

Dedicado em 1997, em Dublin, para homenagear os milhões de irlandeses que em várias formas suportaram, emigraram ou morreram,
Dedicado em 1997, em Dublin, para homenagear os milhões de irlandeses que em várias formas suportaram, emigraram ou morreram, "Fome", do escultor Rowan Gillespie, é uma recordação gráfica dos anos mais desesperados da nação. 

Como muitos outros governos estrangeiros, a corte otomana de fato enviou ajuda para combater a fome na Irlanda em 1847. E a promessa inicial do sultão foi, de fato, reduzida em respeito à diplomacia. Além disso, é verdade que muitos cidadãos estrangeiros, incluindo pelo menos um médico irlandês, trabalharam tanto no Palácio Topkapi quanto na Sublime Porte (a sede administrativa do governo otomano) durante o reinado de Abdülmedjid I entre 1839 e 1861. Em que medida, se de fato aconteceu, esse filho da Irlanda influenciou a decisão do Sultão de enviar ajuda, todavia, não se sabe. Ainda mais obscuros são os detalhes dos navios e suas conexões, se existiram, com os símbolos da estrela e do crescente da cidade. 

As notícias de uma "praga de caráter incomum" que devastou as lavouras de batata na Ilha de Wight, na Grã-Bretanha, chegaram pela primeira vez à mesa do botânico John Lindley, da Universidade de Londres, em agosto de 1845. Como editor da Gazeta de horticultura e crônicas do jardineiro (Gardner’s Chronicle and Horticultural Gazette), Lindley expressou cauta preocupação, e pediu que seus leitores apresentassem quaisquer outras informações sobre a praga. Mas no final daquele mês, quando a catástrofe chegou mais perto de casa, deixando "dificilmente uma sã [batata] no mercado de Covent Garden", como observou Lindley, seu tom mudou para o de alarme: "Uma doença terrível irrompeu nos cultivos de batata. Por todos os lados escutamos falar da destruição... Quanto à cura dessa enfermidade, não existe nenhuma... Estamos sendo assolados por uma grande calamidade".

Se os ingleses estavam alarmados, aquilo não era nada comparado com o pânico que se apoderou da Irlanda até chegar o outono. Aparentemente impossível de debelar, a doença dizimou um terço da safra que era praticamente a única fonte de alimento para mais de três milhões irlandeses das classes mais baixas. A causa da praga, desconhecida para Lindley e seus colegas que viviam em Dublin, e que desesperadamente procuravam por uma cura, foi o fungo Phytophthora infestans, que apareceu pela primeira vez como manchas esbranquiçadas nas folhas murchas das plantas. Os esporos da doença transportados pelo ar se espalharam rapidamente, reduzindo campos de tubérculos saudáveis a montes apodrecidos de uma papa escura com um fedor insuportável. O ano seguinte foi ainda pior, pois a praga assolou por toda a ilha. A perda de dezenas de milhares de hectares, como uma testemunha chocada recordava, não era mais que "o trabalho de uma noite". 

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O excesso de dependência da batata por parte da população agravou a crise. Uma cultura vinda do Novo Mundo, as batatas foram introduzidas na Irlanda durante o final do século XVI e início do XVII pelos colonizadores ingleses. No início, eram consideradas uma iguaria da classe alta. Por volta de 1800, uma variedade carnuda e cheia de protuberâncias, conhecida como a batata "caroço", ideal para o clima frio e úmido da Irlanda, tinha substituído a aveia como alimento básico da classe pobre e trabalhadora. Barata, nutritiva e de alto rendimento, a batata caroço, quando misturada com um pouco de leite ou leite desnatado, fornecia carboidratos, proteínas e minerais suficientes para manter a vida, desde que quantidade suficiente fosse ingerida. Assim, um homem irlandês mediano comia 45 batatas por dia; uma mulher mediana, cerca de 36; e uma criança mediana, 15. Profundamente enraizada na economia e estilo de vida da Irlanda, a batata foi, nas palavras de uma canção tradicional do folclore gaélico, elogiada com adoração como o Grá mo chroí ("Amor do meu coração").

No alto: Uma placa decorativa de metal da empresa de transporte marítimo Steam-Packet de Drogheda, fundada em 1826 e que até meados do século foi a empresa marítima dominante da cidade, é ornamentada em cada um dos ângulos com a insígnia de crescente e estrela da cidade (que aqui mostra uma estrela de seis pontas).
O fato de que isso se pareça muito com o crescente e a estrela da bandeira turca (acima), levou a histórias imprecisas que, de acordo com o historiador Brendan Matthews de Drogheda, começaram a circular na década de 1930, ligando o símbolo da cidade com a gratidão cívica à ajuda turca.
Bridgeman images
No alto: Uma placa decorativa de metal da empresa de transporte marítimo Steam-Packet de Drogheda, fundada em 1826 e que até meados do século foi a empresa marítima dominante da cidade, é ornamentada em cada um dos ângulos com a insígnia de crescente e estrela da cidade (que aqui mostra uma estrela de seis pontas). O fato de que isso se pareça muito com o crescente e a estrela da bandeira turca (acima), levou a histórias imprecisas que, de acordo com o historiador Brendan Matthews de Drogheda, começaram a circular na década de 1930, ligando o símbolo da cidade com a gratidão cívica à ajuda turca.

Apesar da perda desse recurso tão amado e essencial, a Irlanda não era, de forma alguma, despojada de alimentos. Na verdade, suas fazendas e pastos abundavam com porcos, bovinos e ovinos, assim como trigo, cevada, aveia e vegetais; seus córregos, rios, lagos e litoral fervilhavam de peixes. A ironia cruel foi a de que, a maior parte dessa abundância, estava fora do alcance da população faminta.

As melhores terras da Irlanda, que naquele tempo fazia parte da Grã-Bretanha, pertenciam a ricas famílias britânicas e anglo-irlandesas, muitas das quais não viviam no país ou, se o faziam, raramente ficavam suficientemente longe das zonas urbanas de Dublin para pôr os pés em suas propriedades agrícolas. 

"Grande parte da classe dominante da Irlanda não tinha tanto interesse nas terras que possuía quanto tinha com relação aos assuntos, digamos, ligados às minas sul-americanas de cujas ações eram proprietários", observou o historiador Tim Pat Coogan no livro A conspiração da fome: o papel da Inglaterra na maior tragédia irlandesa (The Famine Plot: England’s Role in Ireland’s Greatest Tragedy).

Distanciando ainda mais as classes mais altas, o Ato de União de 1801 dissolveu o Parlamento irlandês e colocou os assuntos do país nas mãos de políticos distantes em Londres. Enquanto alguns Membros do Parlamento Britânico (MPS) estavam realmente preocupados com o bem-estar da Irlanda, a maioria tinha pouca compreensão, e muito menos simpatia, pelo seu povo. Para os mais indiferentes, os irlandeses eram "uma classe que, na melhor das hipóteses, chafurda em pocilgas", como o jornal The Times de Londres descreveu em janeiro de 1848. 

Distantes, tanto geograficamente quanto culturalmente, muitos "proprietários ausentes", como eram conhecidos, arrendavam suas propriedades aos agricultores ricos locais chamados de "intermediários". Assim como as famílias que os contratavam, os intermediários notoriamente pouco se importavam com as propriedades que gerenciavam, além de seus potenciais de geração de receita e, por sua vez, as sublocavam a arrendatários a preços muitas vezes exorbitantes. Os arrendatários, principalmente na província de Leinster, na parte leste, subdividiam ainda mais a terra através de lotes arrendados para trabalhadores sem terra chamados "cottiers" (rendeiros), que pagavam o aluguel trabalhando por um determinado número de dias na fazenda do proprietário. Na parte oeste, em Connacht, os próprios arrendatários sublocavam lotes ainda menores, chamados de terra "conacre", aos trabalhadores itinerantes, cobrando-lhes o dobro da taxa que os arrendatários pagavam aos intermediários. 

Em ambos os sistemas, eram os mais pobres da Irlanda que carregavam em suas costas o peso da economia do país. Durante os anos das Guerras Napoleônicas, de 1803 a 1815, os tempos eram muito bons. Isolados do comércio com a Europa Central por causa do conflito, a Inglaterra se voltou para a Irlanda em busca de alimentos e bens manufaturados. Mas sucessivas explosões populacionais e o fim das guerras deixou a Irlanda com um excedente de pessoas e uma escassez de postos de trabalho. Por volta dos anos de 1840, as famílias que no passado tinham muito, agora se encontravam ganhando a vida com dificuldade para manter a subsistência, batalhando por cultivos de batatas entre filas paralelas achatadas em cima de amontoados de terras chamadas "lazy beds" (canteiros preguiçosos), um modo de cultivo conhecido na Irlanda por cinco mil anos, desde a Idade do Bronze. As atividades de caça ou de pesca em lagos e rios eram ilegais, e a pesca ao longo da costa era uma operação sazonal que exigia um barco e apetrechos. Quando a praga atacou, em 1845, muitas pessoas penhoraram ou venderam os equipamentos de pesca que tinham para conseguir dinheiro para comida, nunca imaginando que o ano seguinte seria ainda mais desastroso.

No entanto, mesmo com a Irlanda faminta, a maioria dos alimentos produzidos em suas fazendas continuou a ser exportado para a Inglaterra, com os lucros enchendo os bolsos dos proprietários. Nas palavras acaloradas do revolucionário irlandês John Mitchell, proferidas mais de duas décadas depois, em 1868, "Deus enviou a praga, mas os britânicos enviaram a fome". 

A insígnia de Drogheda apareceu diversas vezes com estrelas de cinco, seis e sete pontas. O clube de futebol Drogheda United (topo) exibe cinco; o asilo de St. John (acima e em detalhes abaixo) mostra sete. O emblema tem origem em Bizâncio, onde a estrela mostrava oito pontas. O rei inglês Ricardo (
A insígnia de Drogheda apareceu diversas vezes com estrelas de cinco, seis e sete pontas. O clube de futebol Drogheda United (topo) exibe cinco; o asilo de St. John (acima e em detalhes abaixo) mostra sete. O emblema tem origem em Bizâncio, onde a estrela mostrava oito pontas. O rei inglês Ricardo (
A insígnia de Drogheda apareceu diversas vezes com estrelas de cinco, seis e sete pontas. O clube de futebol Drogheda United (topo) exibe cinco; o asilo de St. John (acima e em detalhes abaixo) mostra sete. O emblema tem origem em Bizâncio, onde a estrela mostrava oito pontas. O rei inglês Ricardo ("Coração de Leão") adotou o crescente e a estrela em 1192 após a captura do Chipre do domínio bizantino e os colocou, dois anos depois, na porta de Drogheda.
A insígnia de Drogheda apareceu diversas vezes com estrelas de cinco, seis e sete pontas. O clube de futebol Drogheda United (topo) exibe cinco; o asilo de St. John (acima e em detalhes abaixo) mostra sete. O emblema tem origem em Bizâncio, onde a estrela mostrava oito pontas. O rei inglês Ricardo (

Historiadores modernos, especialmente revisionistas como Coogan, simpatizam com a visão de Mitchell, insistindo que "A Grande Fome" é o termo mais preciso, já que "fome" implica numa escassez de alimentos, o que não era o caso.

"Havia muito alimento sendo produzido e enviado para fora, mas as pessoas que cultivavam este alimento não podiam se dar ao luxo de comprá-lo", diz John O'Driscoll, curador do Museu Fome da Irlanda em Strokestown Park, County Roscommon.

Quando os inquilinos não podiam pagar o aluguel, tendo gastado todo o dinheiro que tinham e vendido tudo o que possuíam para comprar comida, eram expulsos, a mando do proprietário, por funcionários armados. Para evitar que os inquilinos retornassem, equipes de destruição queimavam suas casas ou as reduziam a escombros. Ao presenciar tal cena, o vigário da paróquia de Strokestown, Padre Michael McDermott, escreveu raivosamente uma carta ao The Evening Freeman, publicado em dezembro 1847: "Não vi nenhuma necessidade para a exibição sem propósito de uma tão grande força de militares e policiais... em torno da cabana de um pobre homem, incendiando o telhado enquanto as crianças meio mortas de fome, meio nuas, corriam para longe das chamas com gritos de desespero, e a mãe estava prostrada no umbral se contorcendo em agonia, e o pai com o coração partido permanecia suplicando de joelhos... deixando assim aos párias miseráveis nenhuma alternativa a não ser perecer em uma vala". 

E eles assim pereceram. Mesmo que a safra de 1847 tenha sido sem praga, a colheita não era, simplesmente, grande o suficiente para alimentar a população. Conforme registrado no Censo de 1851 da Irlanda, as mortes por fome entre 1844 e 1847 dispararam na maioria dos municípios: de 8 a 480 em Roscommon; de 51 a 927 em Mayo; de 15 a 586 em Kerry. Daí o epíteto calamitoso "47 Negro".

Alguns responderam com raiva, incitados por pessoas como Mitchell, e houve motins em muitos dos municípios e grandes cidades da Irlanda, quando gangues e quadrilhas itinerantes saquearam casas, lojas e armazéns. Outros optaram pela emigração, raspando todos os centavos que podiam para pagar a passagem para a América, com esperanças de uma vida melhor. Só em 1851, 250 mil imigrantes irlandeses viajaram para os Estados Unidos e se estabeleceram principalmente em Boston e Nova York, onde, em 1855, um terço da população era de origem irlandesa. 

Para aqueles que emigraram, o centro portuário de Liverpool, na Inglaterra, foi tipicamente a porta para a passagem transatlântica. Entre as cidades irlandesas que ofereciam o serviço de navio a vapor regular para Liverpool, foi Drogheda a que se tornou o segundo maior porto de emigração da Irlanda, depois de Dublin. 

"O número de pessoas fazendo estrada por Liverpool através desse porto de Drogheda para a América ultrapassa o de qualquer ano anterior", como relatou o jornal Drogheda Argus em fevereiro de 1847, um ano em que até 70 mil pessoas emigraram das docas de Drogheda. "Todos os dias, a cidade... está repleta de emigrantes com aparências cadavéricas [e] criaturas infelizes que... mostram um semblante absolutamente assustador. Mulheres e crianças foram vistas literalmente competindo com o gado por pedaços de nabos crus que estavam jogados no cais da Steam Packet". 

E mesmo com tais cenas destoantes, os navios de exportação nos portos de toda a Irlanda rangiam com o peso dos alimentos.

"Quisera Deus que você pudesse estar por cinco minutos na nossa rua, e ver por qual bando de criaturas miseráveis, esquálidas e famintas seria instantaneamente cercado, com lágrimas nos olhos e miséria em seus rostos", escreveu o padre John O'Sullivan da paróquia de Kenmare em uma carta a Charles Trevelyan, secretário adjunto do tesouro de Sua Majestade na Grã-Bretanha, em dezembro de 1847. "Qualquer que seja o custo ou despesa, ou seja qual partido venha a onerar, todo cristão deve admitir que o povo não deve sofrer até morrer de fome em meio à abundância".

Trevelyan, no entanto, não estava entre os cristãos que compartilhavam o mesmo ponto de vista de O'Sullivan, acreditando por sua vez que a praga tinha sido enviada por Deus como uma oportunidade de "melhoria moral e política" da Irlanda.

Porém, longe em direção ao oriente, havia um governante que atendeu ao espírito de súplica de O'Sullivan.

Sultão Abdülmedjid I tinha vinte e quatro anos em 1847. Tendo subido ao trono otomano aos 16 anos, ele governaria o império, que ia do Marrocos à Ásia Central, até sua morte em 1861 aos 39 anos de idade. Ele era um calígrafo, fluente e letrado em árabe, persa e francês; um devoto da literatura europeia e um amante precoce da ópera e da música clássica, os sons quase metálicos e recém-gravados que o distraíam em sua tenda nos passeios imperiais. Ele também tinha um grande interesse nos mais recentes avanços da ciência, medicina e tecnologia ocidentais. Depois de presenciar uma demonstração da nova invenção de Samuel Morse, o telégrafo, no Palácio de Beylerbeyi em Istambul, no ano de 1847, ele conferiu ao inventor a Nishan Iftichar (Ordem da Glória) e se deleitou transmitindo pessoalmente uma mensagem do harém para a entrada principal do palácio. 

Ele era um homem de índole branda, consciente de seu trabalho, inteligente, digno, porém humilde e rico de compaixão Stratford Canning Embaixador inglêsAlém de seu entusiasmo pela inovação, Abdülmedjid I ficou conhecido também por sua caridade. Acometido por doenças quando criança, ele queria poupar seus súditos da devastação de doenças infecciosas. Durante as viagens oficiais do Império, ele queria, por exemplo, que as crianças da aldeia fossem vacinadas em sua presença. 

Politicamente, ele era bastante progressista. Determinado a modernizar o império, o jovem sultão começou a instituir a abrangente tanzimat ("reorganização") vislumbrada por seu pai, o Sultão Mahmud II. Isso incluía a abolição das execuções sem julgamento, a emissão das primeiras moedas otomanas em notas bancárias, lançando as bases do primeiro Parlamento Otomano e estabelecendo um sistema de instituições seculares modernas, escolas e universidades sob o mesmo amparo, o recém-formado Ministério da Educação. Na esperança de atenuar o nacionalismo étnico, ele estendeu a cidadania plena e a igualdade perante a lei para todos os súditos otomanos, independentemente de etnia ou religião. Na corte, ele deixou para trás séculos de uma onerosa etiqueta. Os emissários estrangeiros não tinham mais que deixar suas espadas cerimoniais na porta, nem serem mergulhados em água de rosas, vestir kaftans sobre seus uniformes e sentar-se em um nível abaixo do Sultão – se fossem permitidos estar em sua presença.

"Um embaixador no âmbito do novo regime ficava de pé com a espada ao seu lado e o chapéu de três pontas na mão, face-a-face com o Sultão", relatou um enviado britânico.

Entre aqueles que desfrutaram desse acesso livre e familiar a Abdülmedjid estava o embaixador inglês Stratford Canning, filho de um comerciante de Londres de origem irlandesa. Canning admirava as ambições do jovem sultão, mas como um dos diplomatas de longo serviço na corte otomana, ele tinha uma visão ampla de suas excentricidades.

"Ele era um homem de índole branda, consciente de seu trabalho, inteligente, digno, porém humilde e rico de compaixão", observou Canning. "Mas lhe faltava o poder e a iniciativa para transformar seus desejos em realidade".

Em última análise, Abdülmedjid provou que Canning estava errado e poderia ter prosseguido rumo a realizar reformas ainda maiores se não tivesse sucumbido à tuberculose em uma idade tão precoce. Ele foi frágil toda a sua vida e sua saúde debilitada pode ter sido a razão por ele ter se cercado de médicos, estrangeiros em particular, embora de acordo com o historiador Miri Shefer-Mossensohn, tais indulgências eram tanto comuns quanto em voga.

"Franceses, alemães, italianos. Os otomanos sempre tiveram médicos europeus com eles, [junto] com seus próprios doutores otomanos, desde o século XV", diz Shefer-Mossensohn, autora de Medicina otomana: instituições médicas e cura, de 1500 a 1700 (Ottoman Medicine: Healing and Medical Institutions, 1500-1700). A lógica, ela aponta, era essencialmente baseada em probabilidades. "A ideia era: você não sabe qual médico irá fazer você se sentir melhor, então vamos ter tantos quanto possível e empregar uma variedade de habilidades".

O registro mostra que entre a equipe pessoal de especialistas de Abdülmedjid estava Julius Michael Millingen, um doutor de origem inglesa/holandesa que cuidou de Lord Byron em seu leito de morte, um anatomista vienense chamado Spitzer e um médico irlandês de Cork chamado Justin Washington McCarthy. Filho de um advogado nascido por volta de 1789, McCarthy foi aclamado em 8 de setembro de 1841, no jornal de sua cidade natal, o Cork Examiner, como "aquele que alcançou por muito tempo uma superioridade considerável como médico na capital turca. "Ele praticou em Edimburgo e Viena antes de entrar a serviço da corte otomana sob o pai de Abdülmedjid mais de uma década antes. 

A primeira menção e os primeiros indícios de ligação de McCarthy com a história da ajuda alimentar do sultão aos irlandeses aparecem no diário do escritor e patriota irlandês William J. O'Neill Daunt. Escrevendo de Edimburgo em 17 de janeiro de 1853, cerca de seis anos após o evento descrito, Daunt recordou que "Um certo Sr. M'Carthy [sic] chegou. Seu pai é médico do sultão". Nos escritos do dia seguinte, ele relatou: "M'Carthy (o turco)... me disse que o sultão pretendia doar dez mil libras esterlinas aos assolados pela fome, mas foi dissuadido pelo embaixador inglês, Lord Cowley, pois Sua Majestade, que tinha doado apenas mil libras esterlinas, teria ficado irritada se um soberano estrangeiro doasse um valor maior".

Os detalhes da história de Daunt se sustentavam. A rainha Vitória, em 1847, enviou inicialmente apenas mil libras esterlinas, antes de dobrar sua oferta mais tarde. (Por sua parcimônia, a imprensa irlandesa a recompensou com a alcunha de "a rainha da fome").

Além da ajuda financeira do sultão Abdülmedjid I, em maio e junho de 1847, três navios otomanos chegaram a Drogheda. Dois deles vieram do porto otomano de Tessalônica, com uma carga de milho, e um deles veio de Stettin trazendo trigo vermelho. Embora ainda não seja claro para os historiadores se esses navios chegaram com doações ou remessas meramente comerciais, os irlandeses expressaram com eloquência sua gratidão nessa carta ornamentada, que agora faz parte dos arquivos otomanos em Istambul. Uma cópia dela é mantida pela Biblioteca Nacional da Irlanda.
Arquivos otomanos / Cortesia de Mustafa Öztürk Akcaoğlu
Além da ajuda financeira do sultão Abdülmedjid I, em maio e junho de 1847, três navios otomanos chegaram a Drogheda. Dois deles vieram do porto otomano de Tessalônica, com uma carga de milho, e um deles veio de Stettin trazendo trigo vermelho. Embora ainda não seja claro para os historiadores se esses navios chegaram com doações ou remessas meramente comerciais, os irlandeses expressaram com eloquência sua gratidão nessa carta ornamentada, que agora faz parte dos arquivos otomanos em Istambul. Uma cópia dela é mantida pela Biblioteca Nacional da Irlanda.

McCarthy tinha dois filhos, ambos nascidos em Istambul, embora ainda não se saiba qual dos filhos estava em Edimburgo naquele ano. Lord Cowley era o Honorável Henry Wellesley, o chargé d'affaires (encarregado de negócios) do embaixador Canning, que atuou na qualidade de embaixador em 1847, enquanto Canning estava de licença na Inglaterra. Além disso, a parte sobre o sultão, que reduziu sua doação por deferência à coroa britânica, apareceu na imprensa pelo menos três anos antes, em outubro de 1850 na edição da revista The New Monthly, um periódico de artes e política com sede em Londres. Escrevendo de Esmirna (hoje, a cidade de Izmir), na costa do Mar Egeu na Turquia, o correspondente Mahmouz Effendi elogiou o "jovem Sultan Abdul-Medjid, que na recente fome irlandesa contribuiu com a doação considerável de mil libras esterlinas para aliviar as angústias daqueles a quem seu próprio credo chama de infiéis... e que teria dado mais, muito mais, mas que a etiqueta de estado foi citada para mostrar que o soberano reinante da Inglaterra deve, nesses casos, ser o primeiro da lista". 

Expedido durante a ameaçadora formação da Guerra da Crimeia (1853-1856), quando as ameaças russas inspiraram uma aliança otomana com a Inglaterra, o relato de Effendi especulou, além disso, que "[s]e existe um irlandês" servindo sob o almirante William Parker, comandante da frota britânica no Mediterrâneo, temos certeza de que o filho da Ilha Esmeralda irá, no momento da batalha, lembrar-se da generosidade pontual e nobre do sultão; e seja quem for o inimigo, o homem irlandês irá, por mera gratidão, bater com força e casa!

Enquanto não há nenhuma evidência de que McCarthy, o médico, informou o sultão pessoalmente sobre a fome, não teria havido nenhuma necessidade. Desde 1847 a devastação tinha sido notícia no mundo todo e inspirou um apoio igualmente global.

Em 21 de abril de 1847, o Times de Londres elogiou o presente, brevemente. 
Em 21 de abril de 1847, o Times de Londres elogiou o presente, brevemente. 

"Houve um incrível esforço de ajuda internacional, com contribuições vindas de todo o mundo, de Caracas à Cidade do Cabo, Melbourne e Madras", diz Christine Kinealy, diretora do Instituto Grande Fome da Irlanda na Universidade de Quinnipiac em Connecticut, EUA. Enquanto o governo britânico, principalmente sob o predecessor mais simpático de Trevelyan, Sir Robert Peel, estava fornecendo milhões de libras em ajuda na forma de vários programas como os asilos, Kinealy observa que as doações privadas também "desempenharam um papel significativo" no esforço global. Em primeiro lugar entre os doadores privados estava certamente a classe média inglesa e os Quakers americanos que ajudaram a fundar cozinhas de sopa em várias vilas e cidades irlandesas. No entanto, Kinealy aponta que as doações estrangeiras mais comoventes e impressionantes vieram daqueles que eram igualmente tão pobres quanto os irlandeses assolados pela fome.

"Na índia, foram os varredores de tapetes, os trabalhadores mais mal remunerados do país, que enviaram dinheiro para a Irlanda. Na América, as nações indígenas Choctaws e Cherokees também enviaram dinheiro", disse ela.

As encarregadas de canalizar as doações privadas foram a Associação Britânica para o Alívio da Aflição na Irlanda e a Highlands da Escócia, que era comumente conhecida como a Associação Britânica de Assistência, ou BRA, na sigla em inglês, fundada em janeiro de 1847. Em seu relatório anual de 1849, a organização louvou "Sua Majestade Imperial, o Sultão, um subscritor de mil libras esterlinas, cujo exemplo generoso foi seguido, em seu próprio país e em outros, por muitas pessoas cujos únicos laços com o povo da Grã-Bretanha eram de simpatia, humanidade e fraternidade humana". Outras contribuições dentro do Império Otomano incluem uma coleta geral feita em Constantinopla no valor de £ 450,11 e £ 283 enviadas pelo capítulo local da Conferência de São Vicente de Paula (SVP), uma instituição de caridade católica. 

O cais de Drogheda hoje, ao longo do Rio Boyne, perto de sua foz no Mar da Irlanda.
O cais de Drogheda hoje, ao longo do Rio Boyne, perto de sua foz no Mar da Irlanda.

O relatório da BRA incluiu a transcrição de uma carta, hoje guardada nos arquivos otomanos de Istambul, na qual uma série de nobres e clérigos irlandeses agradeciam Abdülmedjid I por sua generosidade. O texto do documento altamente estilizado, escrito em pergaminho e decorado com as estampas de trevo e urze do emblema irlandês, louva o sultão por ajudar "os habitantes sofredores e aflitos da Irlanda", e "dando um exemplo digno a outras grandes nações da Europa". Lisonjeado pela carta, Abdülmedjid I respondeu, como relatado: "Senti uma grande dor quando eu soube do sofrimento do povo irlandês. Eu teria feito tudo em meu poder para aliviar suas necessidades... Contribuindo para o alívio deles, eu apenas ouvi os ditames do meu próprio coração; mas foi também meu dever mostrar minha simpatia pelo sofrimento de uma parte dos súditos de Sua Majestade a Rainha da Inglaterra, pois vejo na Inglaterra um dos melhores e mais verdadeiros amigos da Turquia.

Sem nenhuma surpresa, escondida à vista das entrelinhas dessa admiração mútua está a diplomacia. A carta irlandesa reconhece respeitosamente os "vastos territórios" sob a influência do sultão, enquanto a caracterização calorosa de Abdülmedjid sobre a Inglaterra é um pequeno apelo velado à Coroa, de dar seu apoio em um momento em que o czar Nicolau da Rússia estava ameaçando guerra contra ele. 

Eu teria feito tudo em meu poder para aliviar suas necessidades... Contribuindo para o alívio [deles], eu apenas ouvi os ditames do meu próprio coração - Abdülmedjid IAs manchetes do dia, no entanto, elogiaram Abdülmedjid. "Aflição irlandesa-Simpatia turca", declarou The Nenagh Guardian em 21 de abril de 1847, enquanto que quatro dias antes o The Nation de Dublin tinha aclamado a amizade entre "O sultão e o povo irlandês". Até a cauteloso e conservador Times de Londres, no mesmo dia declarou que a generosidade de sultão com os irlandeses "confere a ele um grande crédito". Em linha com a história, a revista religiosa inglesa Gazeta da Igreja e do Estado (Church and State Gazette), em 23 de abril louvou Abdülmedjid como um governante que "representava populações multitudinárias do Islã", por sua "calorosa simpatia por uma nação cristã". O artigo passou a expressar a esperança de que "essas simpatias, em todas as grandes instituições de caridade de humanidade comum, sejam cultivadas e, doravante, sempre sejam mantidas entre os seguidores da cruz e do crescente"! Seis anos mais tarde, durante o conflito da Criméia, enquanto algumas pessoas na Inglaterra questionavam a pertinência de uma nação cristã vir em auxílio aos muçulmanos para frustrar a ambição da Rússia, outros demonstravam que essas "grandes instituições de caridade de humanidade comum" não foram, de fato, esquecidas.

"Parece haver grande estresse com relação ao argumento de que o sultão, não sendo um cristão... por que deveríamos apoiá-lo, e tudo o mais?", foi o que escreveu Jack Robinson de Wolverhampton em uma carta ao editor de o Daily News em novembro de 1853. "Eu peço para lembrar a algumas pessoas... como o comportamento dele foi tão igual ao de um cristão quando a fome se alastrou pela Irlanda".

Assim, o fato de que Abdülmedjid enviou mil libras esterlinas para a Irlanda estava bem documentado. Mas o que dizer sobre os navios carregados de grãos? Aqui, separar a realidade da ficção se torna mais difícil. Porém, há indícios que sugerem que suas doações podem ter excedido as mil libras esterlinas.

Hoje, quase 70 mil pessoas vivem em Drogheda e seus arredores, incluindo muitos que comutam para Dublin. Como um porto histórico, há muito tem sido administrado com influências do exterior, como fast-food de kebab grelhado, um marco de cozinha turca.
Hoje, quase 70 mil pessoas vivem em Drogheda e seus arredores, incluindo muitos que comutam para Dublin. Como um porto histórico, há muito tem sido administrado com influências do exterior, como fast-food de kebab grelhado, um marco de cozinha turca.

Um artigo de 21 de julho de 1849, no semanal de notícias americanas The Albion, afirmou que "o sultão originalmente ofereceu de enviar 10 mil libras esterlinas para a Irlanda, bem como alguns navios carregados de provisões" (grifo nosso). Uma história semelhante, "Etiqueta Real e suas consequências", na página dois da edição de 29 de setembro de 1849 do The Brooklyn Daily Eagle, relatava que "enquanto a fome estava fazendo o seu trabalho de morte na Irlanda, o sultão turco, Abdul Medjid Khan, propôs fazer uma doação de dez mil libras, e de enviar navios carregados de provisões, para o alívio dos irlandeses famintos" (novamente, grifo do autor). No quarto volume de Vida e Tempos de Sir Robert Peel (Life and Times of Sir Robert Peel), publicado em 1851, o biógrafo Charles Mackay faz a mesma afirmação: que o sultão pretendia enviar £ 10.000 "além de alguns navios carregados de provisões". Alguns anos depois, em 1880, o patriota irlandês Charles Stewart Parnell, que não era amigo da Coroa Britânica, colocou um ponto ainda mais refinado sobre o assunto: Vitória, segundo ele, interceptou os navios turcos junto com suas cargas de grãos, avaliada em seis mil libras esterlinas. Parnell declarou ainda que Vitória não enviou nenhum dinheiro à Irlanda, o que põe em dúvida toda a sua história. Suas falsas afirmações foram imediatamente repreendidas por ninguém menos que Lord Randolph Churchill, pai de Winston Churchill, como sendo parte de uma disputa em curso entre os dois homens que jogavam com as páginas da imprensa inglesa e australiana. Mais recentemente, o autor irlandês Ted Greene em seu volume comemorativo Drogheda: seu lugar na história da Irlanda (Drogheda: Its Place in Ireland’s History), publicado em 2006, traz uma afirmação não atribuída de que Vitória "entrou em cena, impedindo que os navios entrasse, primeiro em Cobh [Cork] e, em seguida, no porto de Belfast, mas eles finalmente conseguiram atracar secretamente no pequeno porto de Drogheda e entregar os alimentos" (grifo original).

De "alguns navios carregados de provisões" para três navios atracando "secretamente" em Drogheda, a história aumentou ao longo dos anos, do que pode ter sido um gesto não realizado por parte de Abdülmedjid (o de acrescentar um pouco de alimentos à sua doação em dinheiro) para uma operação secreta para deslizar as cargas de grãos passando pelas autoridades aduaneiras britânicas. Em ambos os casos, esse capítulo especial da história levanta dúvidas na mente de Kinealy.

"Isso simplesmente não faz sentido. Se ele foi orientado a não dar mais do que a rainha, e queria ter uma aliança mais estreita com a Grã-Bretanha, por que ele arriscaria o envio de três navios sorrateiramente com o potencial de ofender seu aliado?", comentou ela.

Mas do ponto de vista turco muçulmano, diz Ahmet Öğreten, professor assistente de história na Universidade de Kastamonu, no norte da Turquia, a jogada fazia sentido.

"Era um costume comum entre os muçulmanos, que se você disser que vai fazer uma doação, mas só foi autorizado a doar parte dela, você não traz o resto do dinheiro de volta. Você encontra uma maneira de entregar toda a doação, de uma forma ou de outra", diz Öğreten, que está preparando um estudo sobre o episódio. Sua crença de que o sultão teria cumprido sua promessa original, por um sentimento de dever religioso, se reflete na biografia de Abdülme-djid de 1854 escrita pelo reverendo Henry Christmas. "Estou compelido por minha religião a observar as leis da hospitalidade", citou Christmas o que o sultão disse em resposta a um afluxo de refugiados poloneses e húngaros que fugiam da agressão austríaca e russa. O ministro protestante citou isso juntamente com a história do presente aos irlandeses, como exemplos do "verdadeiro espírito de cristandade de Abdülmedjid, e há mais disso no Sultão da Turquia, seguidor de Maomé, do que em qualquer um ou todos os cristãos príncipes da Europa".

Pesquisando arquivos na Irlanda e em Istambul, Öğreten descobriu, no mínimo, uma evidência que sugere que a doação do sultão foi, na verdade, um pouco maior do que foi divulgado publicamente.

"Um documento dos arquivos otomanos registra que ele doou mil liras turcas, e não mil libras esterlinas [britânicas]", diz o professor. O documento diz respeito a um pedido de um homem que foi identificado como a pessoa que apresentou a carta irlandesa de gratidão para o sultão, "Mosyo O'Brien", possivelmente Sir ("Monsieur") Lucius O'Brien, um dos signatários da carta. Se isso foi um erro de escrita, ou um número perdido na tradução, o valor anotado no documento é de "1.000 Liras", o que Öğreten aponta como que, naquele tempo, deveria valer mais que as 1.000 libras esterlinas. Com a taxa de câmbio em 1847 de £ 1,20 para uma lira otomana, a doação de Abdülmedjid de 1.000 liras (£ 1.200) seria, em moeda de hoje, perto de US$ 160 mil.

Seja qual for o montante, como um governante muçulmano distante se tornou um herói nos anais da Drogheda, em última análise se resume a uma confluência de circunstâncias, incluindo, finalmente, o papel coincidente desempenhado pela insígnia da cidade, que usa a estrela e o crescente, de acordo com o historiador de Drogheda, Brendan Matthews, autor do estudo "Drogheda e os navios turcos de 1847".

"O símbolo da Empresa Steam Packet de Drogheda, a empresa privada que oferecia o serviço regular de navio a vapor para Liverpool partindo de Drogheda, era uma bandeira verde com uma estrela branca de cinco pontas colocada acima de uma lua crescente", explica Matthews. A empresa adotou essa bandeira, que hoje se tornou sinônimo de herança islâmica, não dos otomanos, mas a partir da insígnia da cidade de Drogheda que já tinha a estrela e o crescente desde o final do século XII.

Em 1995, William Frank, na época prefeito de Drogheda, reconheceu a ajuda do sultão com essa placa comemorativa na entrada do Hotel Drogheda, o mesmo hotel que pode ter abrigado os marinheiros otomanos responsáveis pela distribuição de milho e trigo.
Em 1995, William Frank, na época prefeito de Drogheda, reconheceu a ajuda do sultão com essa placa comemorativa na entrada do Hotel Drogheda, o mesmo hotel que pode ter abrigado os marinheiros otomanos responsáveis pela distribuição de milho e trigo.

"Eles foram conferidos a Drogheda por Ricardo Coração de Leão em 1194", diz Matthews. O Rei Ricardo adotou o símbolo em 1192, após a captura de Chipre de seu último governante bizantino quando estava a caminho da Terra Santa durante a Terceira Cruzada. O símbolo original, uma fusão da lua crescente da antiga deusa Diana, padroeira de Bizâncio, com a estrela de oito pontas da Virgem Maria, tinha sido usado pelos governantes bizantinos desde o século IV. Ele só se tornou um emblema do Islã depois do século XIV.

Nesse meio tempo, de 1846 a 1847, as importações comerciais de grãos para a Irlanda mais que quadruplicaram, passando de 197 mil toneladas para 909 mil toneladas. Entre os portos que tiveram esse súbito afluxo de grãos estrangeiros, em particular os grãos otomanos, estava Drogheda. "Antes de a fome de 1847, o comércio exterior de Drogheda era... limitado a algumas cargas de madeira báltica e americana", escreveu Anthony Marmion em seu livro História antiga e moderna dos portos marítimos da Irlanda, publicado em 1853. "Desde então, no entanto, e durante os últimos quatro anos, em particular, tem havido um comércio considerável na importação de trigo estrangeiro. Porém, mais particularmente, de milho indiano proveniente do Mar Negro".

Essa expansão era parte do crescimento do comércio otomano-europeu, resultante da tanzimat (reforma) de Abdülmedjid, que fundou um Ministério do Comércio e procurou "forjar novas ligações comerciais com as dinâmicas economias industrializadas da Europa Ocidental", de acordo com o historiador Mark Mazower, autor em 2006 de Salônica, Cidade de Fantasmas (Salonica, City of Ghosts). Carter Vaughn Findley, em seu estudo de 2010 Turquia, Islã, Nacionalismo e Modernidade (Turkey, Islam, Nationalism, and Modernity), observou que, entre 1840 e 1876, essa liberalização do comércio levou a um aumento do valor das exportações otomanas de 4,7 milhões de libras esterlinas para 20 milhões. Findley observou que essas exportações eram constituídas "desproporcionalmente de produtos agrícolas dos Balcãs".

Dedicado em 1997, em Dublin, para homenagear os milhões de irlandeses que em várias formas suportaram, emigraram ou morreram,

Folheando jornais da época, Matthews descobriu que três navios provenientes das regiões dos Balcãs atracaram em Drogheda em maio de 1847, um mês depois da divulgação do presente de Abdülmedjid. Dois dos navios, o Porcupine e o Ann, carregavam milho indiano de Tessalônica (Salônica), enquanto o terceiro, o Alita, trazia trigo vermelho, também conhecido como "O trigo vermelho da Turquia", proveniente de Stettin, um porto no mar Báltico onde hoje é a Polônia. Enquanto Matthews não vai tão longe a ponto de sugerir que esses foram os três chamados "navios secretos", ele realmente especula que a coincidência da convergência entre os navios de transporte de grãos do Império Otomano, a bandeira com estrela e crescente da empresa Steam Packet de Drogheda e o desespero das pessoas que se amontoavam nas docas, podem muito bem ter criado a lenda com essas sementes.

"Havia esses navios que vinham do Império Otomano com marinheiros da Sardenha, Egito e Grécia a bordo, que conheciam muito bem o símbolo da estrela e crescente dos otomanos. Havia 70 mil pessoas irlandesas famintas que se aglomeravam nas docas a procura de trabalho, comida, ou de um modo de sair do país. E então havia esses navios locais arvorando uma bandeira com a estrela e o crescente, que os marinheiros otomanos podiam facilmente identificar", Matthews resume. Essas circunstâncias, ele especula, podem ter levado a um gesto humanitário espontâneo por parte dos marinheiros, que podem ter dado um pouco dos grãos diretamente para os irlandeses famintos, seja por pena ou por algum vago sentimento de parentesco com um porto onde a estrela e crescente arvoravam dos mastros dos navios locais.

"Quem sabe tenham dado 100 sacos de comida? Vinte sacos de grãos, para alimentar 100 famílias? Alguma coisa aconteceu para levar a essa estória através da nossa história oral: a de que, nesse momento de crise, obtivemos o alimento do povo turco", diz Matthews.

Como a estória foi transmitida de geração em geração, Matthews acredita que ela foi embelezada com contos de navios "secretos" e a "adoção" da estrela e do crescente "turco" por funcionários municipais agradecidos. Esses enfeites, ele supõe, provavelmente foram acrescentados na hora de contar e recontar. Um subproduto verossímil em uma cultura famosa por sua tradição oral que, como Júlio César observou em seu Guerras Gaulesas, favoreceu o "emprego da memória" sobre a palavra escrita.

Seja qual for a verdade, esse capítulo na história de "A Grande Fome", no entanto, foi imortalizado em pintura e em pedra, e ainda pode ser transformado em um filme, se as ambições do produtor turco Omer Sarikaya forem realizadas. (Veja o quadro ao lado.)

No entanto, em sua essência reside o fato incontestável de um gesto generoso por parte de um governante otomano em direção a um povo a quem ele nada devia, a não ser a misericórdia exigida dele pela fé e caráter pessoal.

Tom Verde Escritor freelance sediado em Connecticut, Tom Verde ([email protected]) contribui regularmente com AramcoWorld. 

 

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