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Pintura em madeira decora a entrada da Grande Mesquita do Oriente na cidade de Kaifeng, província de Henan, onde a caligrafia árabe aparece entre motivos chineses que incluem dragões, peixes, pássaros, flores de peônias e lótus, além de símbolos de boa sorte; e um cordão de luzes led em torno das vigas que sustentam o teto de telhas. |
Em um país conhecido por grandes números, foi justamente um número redondo e modesto que chamou nossa atenção: 100. Essa é a quantidade aproximada de mesquitas construídas antes do ano 1700 que se estima ainda permanecerem ao longo das regiões central e setentrional da China, de um total de cerca de 30 mil mesquitas distribuídas sobre UMA ÁREA maior do que o Texas ou a França. Partimos em viagem por rodovias e estradas secundárias em busca daquelas mais antigas e menos conhecidas.
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Oferecendo tanto entrada como moldura para vista além dela, uma abertura circular em uma parede é conhecida na China como um portão lunar. Característica comum em jardins, ela também foi utilizada na arquitetura religiosa e, como vemos aqui, no muro da Grande Mesquita de Xian. |
ara nos prepararmos melhor, nos informamos com mais números. Dos mais de 1,3 bilhão de cidadãos chineses, 23 milhões (cerca de 1,8%) praticam a religião muçulmana. Essa população muçulmana é composta pelos dez maiores grupos étnicos e linguísticos do país, incluindo dez milhões de pessoas de origem hui que falam chinês e 8,4 milhões de uigures de línguas turcomanas. As demais etnias são cazaque, quirguiz, salar, tártara e uzbeque, todas falantes de línguas turcomanas; dongxiang e bao'an de língua mongol; e tajique de língua persa.
Não queríamos incluir, no curto período que tínhamos disponível, as mesquitas históricas mais conhecidas da China. Entre elas, estão a Mesquita da Rua Ox de Pequim, que leva esse nome devido à vizinhança muçulmana onde bois (não porcos) eram abatidos, e a Grande Mesquita de Xian, ambas paradas obrigatórias em itinerários turísticos. Evitamos também aquelas preferidas por turistas nas antigas cidades portuárias ao longo da costa sudeste do país, como a Mesquita "Estimando o Sábio" na cidade de Guangzhou (antiga Cantão); a mesquita da "Amizade Sagrada" em Quanzhou; da "Fênix" em Hangzhou; e da "Garça Transcendente" em Yangzhou. Todos esses nomes chineses refletem princípios e mitos do país, e foram atribuídos aos templos por seus respectivos fundadores muçulmanos, que chegaram à China pela Rota Marítima da Seda. Finalmente, excluímos também um terceiro grupo de mesquitas bem conhecidas que atendem à população uigure da cidade de Kashgar e outras do extremo oeste chinês, cuja arquitetura possui muito em comum com as mesquitas do vizinho Uzbequistão e de outros países a oeste.
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No alto: A primeira que visitamos, a Mesquita Norte de Xuanhua, localizada no noroeste da província de Hebei, exibe diversos elementos que simbolizam não só as mesquitas históricas que vimos, mas também outros complexos seculares e religiosos tradicionais dessa parte da China: um pátio central rodeado por salões e salas baixos, estruturas de madeira, um salão de oração principal ligeiramente elevado e paredes circundantes feitas de pedra ou tijolo. Acima: Muitas mesquitas históricas passaram por reformas nos últimos anos, como a Mesquita de Beiguan na cidade de Tianshui, província de Gansu, onde a caligrafia árabe foi mantida intacta sobre o mihrab, ou nicho de oração (ao fundo e ao centro). |
Nós consideramos muito mais intrigantes as mesquitas históricas bem menos conhecidas e fora do circuito badalado, localizadas nas regiões central e setentrional da China, adaptadas e construídas com base no estilo de construção tradicional chinês para atender às necessidades islâmicas.
Logo depois de nos encontrarmos em Pequim, um motorista nos levou em direção noroeste rumo à província ocidental de Hebei. Ao longo da viagem de três horas de duração, tivemos um rápido vislumbre da Grande Muralha antes de pararmos na cidade de Zhangjiakou para visitar a Mesquita Norte de Xuanhua. Lá, do lado de fora de uma livraria próxima, uma casual saudação de "as salamu alaykum", "Que a paz esteja com você" em árabe, foi logo compreendida com um sorriso e levou a um convite para entrarmos no estabelecimento: o lugar estava repleto de Qur'ans, livros e inscrições caligráficas em árabe e chinês escritas por nosso anfitrião. Estava claro que esta seria uma viagem extremamente fascinante.
Na verdade, viajando exclusivamente por via terrestre ao longo das duas semanas seguintes, exaurimos seis diferentes motoristas e automóveis, e viajamos em um trem noturno para subirmos pelo vale do Rio Amarelo de Guyuan a Xining, no planalto tibetano. (Veja o mapa abaixo) No total, atravessamos sete províncias: Hebei, Shanxi, Gansu, Qinghai, Shaanxi, Hubei e Henan, além das regiões autônomas da Mongólia Interior e Ningxia; todas áreas localizadas no centro, no norte e no noroeste da China, com presença significativa de populações hui.
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Os locais de sepultamento dos homens que tanto contribuíram para a introdução do Islã na região central da China no século XVIII estão identificados com estruturas em estilo de pagode, como esta à esquerda na cidade de Linxia, província de Gansu, rodeada de construções para adoração e ensino. Pouco da parte externa indica que esses são centros históricos de aprendizagem e conhecimento. À direita: Uma representação em baixo relevo retrata o complexo de edifícios murado tradicional chinês. |
Considera-se que muitas das mesquitas da China possuem longas histórias, mas costuma ser difícil determinar quão antigos são seus edifícios. Ninguém gosta de falar sobre o que ocorreu durante a Revolução Cultural, que durou uma década até a morte de seu líder, Mao Tsé-Tung, em 1976. Durante aquele período, a prática religiosa era cerceada, e muitos edifícios religiosos foram ocupados e aproveitados para outros fins. Em alguns lugares, estelas (pedras planas verticais) com inscrições, geralmente em árabe de um lado e em chinês de outro, contam histórias de mesquitas ao longo dos séculos, mas muitas das que restam datam do século XVIII adiante e, geralmente, estão sobrepostas com reconstruções, reparos e pinturas mais recentes, tudo variando muito quanto à fidelidade aos estilos mais antigos. De fato, em Tianshui, província de Gansu, a Mesquita de Beiguan estava sendo submetida a uma restauração desse tipo.
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À esquerda: O portão de entrada para o complexo em Guyuan, na região autônoma de Ningxia, combina características típicas das decorações arquitetônicas islâmica e chinesa: a ornamentação exterior justapõe textos e motivos árabes e chineses, incorporando flores, frutas, pássaros, animais reais e míticos, tudo coberto com os tradicionais tetos chineses de telhas verdes com pontas onduladas e em forma de bestas fantásticas. No alto à direita: Minaretes de uma mesquita recentemente construída e de forma estilizada não chinesa aparecem no fim da rua (visível à esquerda) em Linxia, que em sua época prosperava sobre a Rota da Seda transasiática e hoje abriga mais mesquitas do que qualquer outra cidade da China, mais de 70, entre antigas e novas. Inferior à direita: Refletidas na janela de vidro adaptada na varanda de uma mesquita em estilo chinês tradicional localizada em Xining, capital da província de Qinghai e a maior cidade do planalto tibetano, estão as cúpulas e minaretes de uma mesquita próxima e muito mais recente, construída em estilo "islâmico internacional". |
Os muçulmanos chegaram à China logo após o surgimento do Islã, no século VII, principalmente como embaixadores ou comerciantes. Eles vieram por terra, ao longo das Rotas da Seda que cruzavam a Ásia Central, e por mar, sobre o oceano Índico pelo estreito de Malaca. Fontes históricas afirmam que, em 651, um enviado representante do terceiro califa, Uthman, chegou à corte da dinastia Tang em Changan, na China central. Com a disseminação do Islã pela Ásia Central e a conversão dos turcos à religião, cidades na província ocidental de Xinjiang tornaram-se importantes centros de cultura muçulmana já no início do século X. Contudo, além de algumas lápides do século XII encontradas em cidades costeiras, a primeira evidência física da presença de muçulmanos na China é a existência de diversas mesquitas do século XIV no sudeste do país, em grande parte reconstruídas atualmente.
Nos séculos XVIII e XIX, seguidores de Afak Khoja, enterrado em 1693 ou 1694 na parte externa da cidade de Kashgar, província de Xinjiang, levaram uma onda de Islã na direção leste, a Gansu, Ningxia e outras regiões centrais do país. Os túmulos dos discípulos tornaram-se centros de complexos religiosos que também incluíam salas de adoração e ensinamento. Essas construções adaptaram formas e motivos chineses tradicionais para atenderem às necessidades do Islã, mas o fizeram de formas que poderiam surpreender os visitantes vindos de terras islâmicas mais ocidentais. Por exemplo, muitas delas estão decoradas não só com caligrafia árabe, mas também com cenas figurativas e representativas tradicionais chinesas. A cidade de Linxia, província de Gansu, possui muitos desses complexos que funcionam não só como centros de conhecimento muçulmano, mas são também oásis de calma em meio à vida urbana.
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O portão de entrada do novo Parque de Cultura Hui (abaixo à direita) fica próximo da Mesquita da Família Na (à esquerda), mas está a três mil quilômetros e quatro séculos de distância de seu modelo arquitetônico, o Taj Mahal, construído na cidade indiana de Agra pelo imperador mogol Shahjahan no século XVII. Esse parque cultural reflete tanto a nova riqueza da China como a globalização da cultura islâmica. No alto à direita: A Mesquita da Família Na em Yongning, região autônoma de Ningxia, reflete a arquitetura chinesa tradicional, com suas varandas e telhados de pontas, mas o portão de entrada em arco recentemente restaurado e as duas torres em tijolo cinza que a ladeiam evocam a influência posterior das mesquitas do Oriente Médio, com a simetria de uma entrada principal ladeada por minaretes. O minbar (ou púlpito) em degraus da mesquita é outra adaptação chinesa de uma forma islâmica tradicional. Atrás dele, a parede está pintada com um emblema que combina de forma similar motivos chineses e caligrafia árabe. |
Juntamente com o antigo, descobrimos também muitas coisas novas. Nos séculos anteriores, era particularmente difícil para os muçulmanos da China realizar longas viagens aos centros de aprendizagem islâmica localizados a oeste, especialmente o Hajj (ou peregrinação) a Meca, o que deveria levar até dois anos. Atualmente, os muçulmanos chineses, assim como sua população de maneira geral, estão mais conectados com o resto do mundo do que nunca, e as consequências arquitetônicas dessa realidade são cada vez mais visíveis: diversas mesquitas antigas encontram-se agora ao lado de outras novas e reluzentes, muitas delas financiadas por estrangeiros e projetadas segundo o chamado estilo "islâmico internacional", que se destaca por cúpulas verdes pontiagudas e minaretes altos e finos, características que encontram sua origem na China. Vimos um exemplo particularmente notável de tal justaposição de estilos importado e natural chinês em Yongning, região autônoma de Ningxia, onde a tradicional Mesquita da Família Na (também chamada Mesquita Naijahu) encontra-se próxima ao Parque da Cultura Hui, cujos projetistas parecem ter se inspirado principalmente no Taj Mahal da Índia.
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Estrutura retangular de madeira armada em vigas e erguida sobre uma plataforma com paredes externas em tijolo e um teto de telhas, a Mesquita Zhuxian na cidade de Kaifeng, província de Henan (à esquerda) difere pouco do salão de adoração do monastério budista em Ledu, no planalto tibetano próximo a Xining (à direita). Na mesquita, os dois pequenos pavilhões em ambos os lados do caminho, que em uma configuração budista poderiam ser torres de tambor e sino, aqui contêm estelas, ou placas de pedras verticais que narram a história da mesquita. |
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Essas mesquitas que empregam estilos não chineses são exemplos surpreendentes de mudanças em uma cultura arquitetônica profundamente tradicional e que aplicou princípios de projeto comuns de forma consistente a todos os tipos de construções seculares e religiosas ao longo de milênios. Os palácios de governantes e outras parcelas da elite, que são basicamente casas muito grandes, serviram de modelo para os primeiros templos budistas, taoístas, confucionistas e, posteriormente, também para mesquitas. Consequentemente, há uma quantidade surpreendente de construções chinesas que se assemelham muito umas às outras. Por exemplo, um templo budista do século IX, um templo taoísta do século XIII, uma mesquita do século XV, um salão funerário do século XVI, um salão confucionista do século XVII e uma residência do século XIX podem todos exibir claras semelhanças. Por que a arquitetura chinesa possui tantas características comuns com finalidades tão variadas, em tantas regiões geográficas e ecológicas, ao longo de milênios, foi uma pergunta que acompanhou nossa viagem em cada cidade, em cada mesquita. Ainda que o tamanho das construções e a qualidade dos materiais exibissem diferenças de status e patrocínio de cada estrutura, tais aspectos não costumam caracterizar nenhuma diferença em sua finalidade.
Uma resposta simples para essa pergunta, exemplificada pela arquitetura de mesquitas datadas dos séculos XIV ao XX, é a flexibilidade. Elas foram todas construídas com estruturas de madeira apoiadas por um conjunto de suportes de mesmo material, cobertas por telhas de cerâmica, agrupadas em complexos dispostos simetricamente por eixos horizontais e ao redor de pátios retangulares, e erguidas atrás de muros, geralmente de tijolo, com um portão principal que aponta para o sul.
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As duas torres de três andares que ladeiam o portal da mesquita do século XVIII recentemente restaurada em Datong, cidade localizada no norte da província de Shanxi, são interpretações locais de um símbolo do Islã não chinês recentemente universalizado. Os florões em forma de crescente no topo das torres são complementados por sinos chineses pendurados nos beirais. |
Portanto, transformar o projeto de um palácio ou templo chinês tradicional em uma mesquita era muitas vezes uma questão de simplesmente orientar o complexo para Meca, o que na China foi por muito tempo entendido como sendo a direção oeste. O salão de orações está geralmente na construção principal e localiza-se no centro do complexo em uma plataforma ou base como demonstração de sua importância, uma prática exclusiva da China. Ao longo das paredes do pátio, reúnem-se estruturas auxiliares para salas de aula, escritórios e abluções, além de residências para funcionários, estudantes e viajantes, funções que, em alguns países islâmicos, costumam ser acomodadas em construções separadas ou adjacentes, como madrassah (escola religiosa), kuttab (escola primária), khanaqah (casa de hospedagem), imaret (cozinha pública), entre outras. A maioria dessas funções, educação, administração, aposentos para líderes religiosos e visitantes, aparece também em complexos budistas e taoístas chineses.
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Em uma moldura tradicional chinesa, a caligrafia árabe (à esquerda) é usada muitas vezes para decorar as paredes das mesquitas, como esta entrada da Grande Mesquita do Oriente, em Kaifeng. A linha fluida é típica da caligrafia chinesa, que é normalmente executada com pincel, em lugar da pena utilizada em outras regiões islâmicas. Ao centro: Geralmente localizada no meio do pátio de uma mesquita, a wangyuelou (ou "torre de observação da lua") semelhante a um pagode não é um minarete, embora os alto-falantes hoje instalados nesta de Xunhua, província de Qinghai, mostrem que ela foi adaptada para esse propósito. À direita: Os telhados das construções tradicionais da China são cobertos normalmente com telhas cerâmicas vitrificadas, algumas delas decoradas nas extremidades e linhas de borda com motivos vegetais e florais, ou com bestas fantásticas como dragões e fênix. As extremidades de algumas das telhas cilíndricas são moldadas com inscrições árabes, enquanto outras possuem dragões impressos. Todas essas características se combinam neste telhado da Grande Mesquita do Norte, localizada em Qinyang, província de Henan. |
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Em uma loja de doces do lado de fora da mesquita em Hohhot, capital da região autônoma da Mongólia Interior, as sinalizações estão escritas principalmente em caracteres chineses, mas o árabe escrito na forma oval ao centro mostra que a comida é halal, ou permitida a muçulmanos. No entanto, essas letras estão incorretamente escritas com caracteres separados, como no chinês. |
Além disso, esse sistema arquitetônico tradicional chinês costuma possuir um perfil mais discreto, diferentemente do pagode, que é a versão chinesa de uma estupa budista indiana, uma montanha simbólica que contém relíquias budistas. O minarete, a torre adjacente a uma mesquita a partir da qual é realizado o chamado à oração, não era necessariamente parte da mesquita chinesa tradicional, ainda que em alguns lugares os construtores chineses tenham transformado o pagode em wangyuelou (ou "torre de observação da lua"), situada no meio do pátio da mesquita. Ela não era utilizada para o chamado à oração; essa função era, e ainda é, desempenhada a partir da porta de entrada da mesquita, agora com auxílio de amplificação eletrônica.
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A arquitetura chinesa tradicional costuma se basear em postes e vigas de madeira, e geralmente não utiliza arcos. Uma exceção é a antiga associação do arco com o mihrab, o nicho na parede que se orienta para Meca em uma mesquita, o que acabou introduzindo esse novo formato pelas mesquitas chinesas. Da esquerda para a direita: Mihrabs em Linxia (Antiga Mesquita Wang), em Tongxin e, abaixo à esquerda, em Dingxiang. Abaixo à direita: Vigas de madeira pintadas em Dingxiang. |
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Baoding e Kaifeng (Mesquita Zhuxian). |
Enquanto na maior parte do mundo de clima seco muçulmano os construtores preferiram o uso de tijolos e pedras devido à escassez de madeira, a China sempre teve madeira disponível em abundância. A construção chinesa tradicional com molduras de madeira, seja em palácios, templos ou mesquitas, baseou-se em postes de madeira para a sustentação de vigas horizontais que, por sua vez, suportam outras vigas e também o telhado. Esses elementos foram unidos por meio de um sistema de encaixes e pinos com braçadeiras, conhecido como conjuntos de suporte: não há pregos nem parafusos.
Essa habilidade adquiriu complexidade entre os séculos XIV e XVII. Os conjuntos de suporte simples com duas ou três camadas de "braços" das construções do século XIV se tornaram, três séculos mais tarde, conjuntos de cinco a sete camadas agrupadas ao longo de nove diferentes ângulos. Eventualmente, os suportes ficaram tão próximos uns dos outros que poderiam ser vistos como um equivalente chinês dos muqarnas, o motivo caleidoscópico semelhante a estalactites que embelezam a arquitetura islâmica de Bucara a Granada.
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Ao longo do curso do rio Amarelo na província de Qinghai, a Mesquita Hongshuiquan é um dos exemplares mais bem preservados e evocativos da China central. Seu salão de entrada (à direita) exibe um exemplo extraordinariamente claro da construção em molduras de madeira tradicional da China, na qual todos os postes, vigas e suportes são unidos com juntas de encaixe e pinos sem uso de pregos ou parafusos de metal. |
Ainda que a madeira tenha sido o material de construção mais importante, o tijolo foi utilizado de forma característica nos muros divisórios e externos dos edifícios, e a telha de cerâmica foi usada nos telhados. E embora os construtores chineses tradicionais conhecessem e usassem arcos e abóbadas, eles os empregaram principalmente em túmulos subterrâneos, não na arquitetura acima da superfície.
Para os muçulmanos, no entanto, o arco possui um significado particularmente religioso: desde sua introdução já nos períodos iniciais do islamismo, o mihrab, ou nicho na parede que se orienta para Meca em uma mesquita (qibla), assumiu invariavelmente uma forma arqueada que aparece, com variações, até os dias atuais. Igualmente devido à escassez de madeira no Norte da África, no Oriente Médio e na Ásia Central, a técnica comum para cobrir um espaço tornou-se a abóbada de tijolo ou pedra, abóbadas sendo nada mais do que arcos girados e, por extensão, prolongados no espaço. Os muçulmanos chineses também parecem ter, por vezes, associado as abóbadas com o Islã, uma vez que algumas das mesquitas em estrutura de madeira que vimos exibiam espaços arqueados, abobadados e em tijolo na parte mais importante da construção: a abertura em frente ao mihrab. Esse tipo de construção é conhecido em chinês como um "salão sem vigas". E em outras vezes, a construção de madeira de fato imitava um espaço abobadado sem renunciar à sua dependência estrutural de postes e vigas.
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Como a arquitetura chinesa tem sido tão consistente ao longo de milênios, uma forma de identificar o período de uma determinada construção é olhar para a complexidade dos "conjuntos de suporte", as escoras de madeira que suportam o telhado: quanto mais complexos forem os conjuntos de suporte, mais recente será a construção. Estes na mesquita de Hongshuiquan remontam ao século XVIII ou XIX. À direita: Na mesquita de Hongshuiquan, o mihrab fica nessa pequena sala quadrada, coberta com painéis esculpidos com requinte e com esse teto de madeira elaborada que evoca uma cúpula. |
A decoração das mesquitas que vimos combinam de forma semelhante tradicionais motivos de caligrafia islâmica, seus ornamentos geométricos e vegetais com os tradicionais motivos chineses de flores de peônias e lótus, dragões e fênix. O uso de escrituras árabes é a diferença mais óbvia entre os muçulmanos e o restante da população da China, seja nas mesquitas ou nos mercados.
No país, a caligrafia árabe exibe muitas vezes uma linha excepcionalmente fluida que reflete a antiga tradição chinesa de escrever com pincéis em lugar das penas comuns em outras regiões islâmicas. No caso de ornamentos vegetais e florais, há muita sobreposição entre ambas as tradições, mas é exclusivamente chinês retratar bestas míticas em conjuntos religiosos islâmicos, onde se costuma evitar a representação de figuras. Algumas vezes, essas bestas são dispostas como figuras guardiãs ao lado das portas de entrada ou em telhados decorativos; outras vezes, elas integram a decoração esculpida e pintada. De forma similar, em algumas mesquitas muçulmanas adotou-se o tradicional uso chinês do incenso, e em determinados pátios é possível encontrar grandes vasos de bronze ou cerâmica, inscritos em árabe ou chinês e preenchidos com areia para sustentar fumegantes varetas de incenso.
A maior surpresa da nossa viagem talvez tenha sido a encantadora mesquita de Hongshuiquan ou "Longa Primavera", em Ping'an, a qual encontramos após viajarmos por várias horas de carro a partir da cidade de Xining, no alto do planalto de loesse da província de Qinghai, ao longo do curso do rio Amarelo. Não sabíamos exatamente o que esperar à medida que avançávamos por nosso caminho através de pequenas aldeias agrícolas erguidas sobre camadas de loesse depositadas ao longo de milênios pelos ventos dos desertos da Ásia Central.
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O zelador da mesquita de Hongshuiquan nos deu as boas-vindas. A ausência incomum de pintura destaca a pureza de sua preservação. |
Para nossa surpresa, esta mesquita remota demonstrava poucos indícios de restauração, ainda que estivesse em boas condições. Quando fechamos nossos olhos e escutamos um canto de cuco no silêncio tão raro da China moderna, fomos transportados de volta ao século XVIII ou XIX, quando foi construída esta mesquita de madeira primorosamente elaborada.
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Sheila Blair (sheila.blair@bc.edu) e Jonathan Bloom (jonathan.bloom@bc.edu) compartilham a cátedra universistária de Arte Islâmica e Asiática Norma Jean Calderwood no Boston College e a cátedra subvencionada Hamad bin Khalifa de Arte Islâmica na Virginia Commonwealth University. |
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Nancy Steinhardt (nssteinh@sas.upenn.edu) atua como presidente de departamento e professora de Arte do Leste Asiático na University of Pennsylvania. Ela é autora de As primeiras mesquitas da China (China's Early Mosques), a ser lançado pela Edinburgh University Press, editora da Universidade de Edimburgo. |