Em Samos, uma pequena ilha grega na costa turca, um dos mais estranhos tesouros em exibição no Museu Arqueológico é a ponta de uma maça de bronze descoberta localmente, que retrata a cabeça do assustador demônio Pazuzu.
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colar: bruce white/museo arqueológico de sevilla; caldeirão: bruce white/cyprus museum; estátua: british museum |
No alto à esquerda: por volta de 700 AEC, a povoação fenícia de Spal, uma antecessora da espanhola Sevilha, era tão grande e bem estabelecida que seus sacerdotes usavam este suntuoso, intrincado e pesado colar para rituais. Parte do tesouro de quatro peças de Carambalo, ele demonstra a elaborada arte que a Fenícia disseminou por todo o Mediterrâneo. Acima à esquerda: datado de período um pouco anterior e parecido com outros provenientes da Grécia e Anatólia, este caldeirão de bronze retirado da tumba 79 em Salamina, Chipre, possui oito grifos e quatro protomos homens-sereia. Acima à direita: sob o comando de Ashurnasirpal II, o Império Neoassírio iniciou sua expansão ao oeste em direção ao Mediterrâneo. Esta estátua de magnesita de 113 centímetros é uma rara escultura que data de aproximadamente aquele período. |
Veio da Mesopotâmia, mais de 1.500 quilômetros a leste. Na italiana Toscana, cabeças de leões igualmente apavorantes importadas do reino de Urartu, hoje Armênia e leste da Turquia, circundam o alto de caldeirões de bronze. Nas águas do sudeste da Espanha, foram encontradas em um naufrágio recentemente explorado presas de elefantes africanos com inscrições dos nomes de deuses fenícios. Esses achados provavelmente vieram de uma colônia fenícia próxima de Sevilha ou Cádis, a cerca de 4.000 quilômetros do coração da Fenícia, na extremidade oriental do Mediterrâneo. E a esses mesmos mercadores marítimos podemos agradecer pela existência de nada menos que Ilíada e Odisseia de Homero, que foram escritas a partir da tradição oral entre os séculos VIII e VI AEC, depois que os gregos adotaram a inteligente ideia fenícia de escrever com um alfabeto.
Esse foi o início da Idade do Ferro, na primeira metade do primeiro milênio AEC, muito antes que a "globalização" e a Internet viessem a definir a nossa própria era de hiperconexão, e as rotas comerciais já teciam o Oriente Próximo, o Norte da África e o Mediterrâneo em uma teia de culturas altamente complexa e profundamente simbiótica. Na época de Homero, cerca do início do milênio, havia uma florescente rota intercontinental de valiosos produtos em ouro, joias e marfim, objetos exóticos de culto, mobília trabalhada de forma intrincada e baixelas de prata polida com magistrais incisões de cenas elaboradas que retratam caçadas e batalhas heroicas, além de mercadorias mais comuns.
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WILLIAMS COLLEGE MUSEUM OF ART |
Esculpida talvez no início do governo de 24 anos de Ashurnasirpal II (provavelmente em 880 AEC), esta figura alada esteve entre os afrescos de gesso em baixo-relevo que decoravam o Palácio Noroeste em Nimrud, local neoassírio em que primeiro se tem notícia da produção de tais afrescos. A inscrição cuneiforme no centro registra a linhagem do governante e descreve a cidade e o palácio. Originalmente, ela era pintada em cores vivas. |
Os reinos, territórios e culturas eram muitos, mas havia uma força propulsora maior por trás desses intercâmbios: o Império Neoassírio. Em seu auge no século VII AEC, ele se estendia de sua capital em Nínive, atualmente no Iraque, para abranger a Babilônia e a parte ocidental do Irã, o norte do Egito, o Levante e a Anatólia. Herdeiro dos menos extensos (e menos vorazmente expansivos) impérios assírios do terceiro e segundo milênios AEC, ele porém não se projetou em direção ao Mediterrâneo. Para alcançar o oeste, os neoassírios se aliaram aos fenícios, que lhes retribuíram com tributos, comércio marítimo e busca de recursos.
Um grande motor da exploração era a busca pelo ferro, que provou ser superior ao bronze como material para ferramentas e armas. Os navegantes e comerciantes fenícios estabeleceram postos por todo o mundo antigo, incluindo a costa norte-africana em Cartago, as principais ilhas do Mediterrâneo e ao longo das costas meridional e ocidental da Ibéria (hoje Espanha e Portugal).
Até mesmo o rei Midas, que era o verdadeiro soberano de Frígia (atual Turquia) no século VII ou VIII AEC, desempenhou seu papel na diplomacia intercultural. De acordo com o historiador grego Heródoto, Midas foi o primeiro governante estrangeiro a prestar homenagem ao profético oráculo no santuário grego de Delfos. Essa jornada o levou pelo mar Egeu cerca de 800 quilômetros a oeste. O majestoso trono que ele ofertou ao oráculo de Delfos era feito de madeira e marfim, embora conte a lenda que tudo o que era tocado por Midas se transformava em ouro, talvez a história diga respeito a um rei anterior, também chamado Midas, mas ninguém pode afirmar com certeza. Uma estatueta que ajudava a decorar esse presente intercontinental, com 35 centímetros (9 polegadas) de altura e olhos esbugalhados, com sua mão esquerda descansando sobre um leão domado e a direita segurando uma lança em uma tradicional postura de "mestre dos animais", esteve nesse inverno juntamente com outros incríveis objetos na exposição "Assíria à Ibéria no alvorecer da Idade Clássica" no Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque.
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JURGEN LIEPE/BPK/VORDERASIATISCHES MUSEUM, STAATLICHE MUSEEN ZU BERLIN/ART RESOURCE |
Encontradas desde a Itália até o Irã, conchas Tridacna squamosa eram ricamente esculpidas e utilizadas como cobiçadas embalagens de luxo para cosméticos. Esta, esculpida em ambos os lados e com sua dobradiça estilizada para assemelhar-se a uma cabeça humana, data do século VII ou VI AEC e foi encontrada na casa assíria 58 em Assur. |
"Nós acreditamos que vivemos hoje em uma era global, mas você precisa olhar muito para trás no tempo para ver quão proximamente as pessoas interagiam", explicou Joan Aruz, curadora da exposição, à medida que me guiava por suas galerias. O primeiro milênio AEC foi a primeira era em que artes e mercadorias de diferentes culturas eram transportadas pelos três continentes – grande parte do oeste da Ásia (o Oriente Próximo) e África para o sul da Europa, ela disse.
"Você deve entender essa fase para apreciar o que veio depois, mas a maioria das pessoas não tem conhecimento do que acontecia antes do Período Clássico grego. Elas pensam que ele simplesmente surgiu da cabeça de Zeus, como Atena", acrescentou com uma risada.
Dando conta de grande parte da dívida que o mundo ocidental clássico deve principalmente aos antecedentes do Oriente Próximo, a exposição não tem como foco reinos ou Estados individuais, tampouco a vida na Assíria ou Fenícia, Egito ou Judá, Elam, Urarto, Etrúria ou Ibéria (a lista é longa), mas sim naquilo que vinculava a todos: o intercâmbio artístico, cultural, econômico e religioso. Durante os cinco anos que levou para desenvolverem a mostra, Joan Aruz e seus colegas selecionaram e garantiram cerca de 260 objetos provenientes de 41 museus e instituições em 14 países. Realizar uma exposição restrita a uma única civilização teria sido uma brincadeira de criança em comparação com esta.
Aruz e sua equipe levaram uma ampla experiência ao desafio. "Assíria à Ibéria" foi a terceira de uma série de grandes exposições que contam histórias sobre a arte e o comércio precoces provenientes desde o vale do Indo no leste até às áreas mais ocidentais do Mediterrâneo. Em 2003, "Arte das primeiras cidades" examinou as culturas mesopotâmicas e sumérias do terceiro milênio AEC. "Além da Babilônia", o segundo episódio que deu continuidade em 2008, olhou para o dominante Império Babilônico do segundo milênio AEC. Esta última instalação englobou a primeira metade do primeiro milênio, o início da Idade do Ferro, quando a Assíria controlava o Oriente Próximo até que os povos babilônios e medos a derrubassem no início do século VII AEC.
Foi uma época de guerras devastadoras, mas também uma efervescência cultural tectônica. O período trouxe uma enxurrada de estilos artísticos, imagens e símbolos religiosos e míticos do Oriente Próximo, além de novas técnicas para a confecção de ouro, prata, bronze, vidro, cerâmica e pedra, que seguiam em direção oeste graças, em grande parte, a mercadores fenícios, artesãos itinerantes e mercenários gregos. O Mediterrâneo foi inundado por esculturas de incríveis grifos de bronze, esfinges galopantes, deusas sensuais, fantásticos homens alados e reis triunfantes. Muitas dessas imagens-criaturas possuíam funções apotropaicas, ou seja, eram talismãs colocados em relevos de parede, mobiliário, caldeirões e outros objetos para afastar o mal.
Como as exposições anteriores, muito de "Assíria à Ibéria" foi ao mesmo tempo revisionista e expansiva, uma grande história que ampliou a conscientização da riqueza das artes e culturas do Oriente Próximo e, acima de tudo, suas influências penetrantes sobre a estética do que mais tarde surgiu como o mundo Clássico ocidental. "O público em geral costuma prestar mais atenção em eventos atuais e não percebe os centros vitais que esses lugares foram para a cultura", apontou Aruz. Por exemplo, ela acrescentou, a área de Mossul, no Iraque, contestada veemente e calorosamente nos últimos anos, foi o coração do Império Neoassírio.
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MUSÉE DU LOUVRE/BRIDGEMAN IMAGES |
Representações domésticas são raras para os séculos VIII e VII AEC: a maioria das imagens do período referia-se a deuses, governantes e guerras. Este baixo-relevo elamita, esculpido em um composto de betume, exibe uma mulher sentada em uma cadeira, sobre seus pés delicadamente dobrados, ostentando com orgulho um carretel de fios; de trás, um criado a abana. Seu realismo e simples humanidade dão um vislumbre de um domínio privado no passado distante. |
Por mais ambiciosa que fosse, a exposição não poderia cobrir tudo. A apresentação abordou somente as extensas e poderosas rotas árabes de especiarias, por exemplo, embora intrigantes aportes acadêmicos tenham surgido durante simpósios realizados em conjunto com a exposição. A própria Aruz ficou particularmente entusiasmada com uma recente descoberta em Megido, Israel, em que traços de canela foram identificados em jarras fenícias. "Quando se percebe que esta canela veio da parte sudeste da Ásia, é surpreendente ver quão distante essas pessoas viajaram ao longo das rotas de especiarias", explicou.
A exposição também trouxe a bem-vinda atenção a artefatos raramente vistos de coleções locais distantes e menos conhecidas, incluindo de ilhas como Samos, Rodes e Sardenha, além de Erevan na Armênia e de outros lugares. Além disso, peças não exibidas de instituições bem conhecidas como o Museu Britânico e outras foram tiradas do depósito e colocadas à vista, muitas delas pela primeira vez em décadas, se é que alguma vez estiveram expostas. Uma vez ou outra durante o nosso passeio, Aruz apresentava um objeto dizendo que poucas pessoas, se houve alguém, o tinha visto antes. Disse que uma grande quantidade ela descobriu por acaso, enquanto visitava um museu para inspecionar um objeto conhecido e felizmente tropeçou com outros, alguns exibidos, outros mofando no porão. Com esta exposição, esses museus menores tenderão a atrair mais visitantes e estudiosos, previu Aruz.
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BRITISH MUSEUM |
Crônica implacável de uma conquista, este quase panorâmico baixo-relevo retrata a vitória dos neoassírios sobre os elamitas aproximadamente no ano 653 AEC, em Til Tuba, hoje no Irã. Inscrita no palácio sudoeste de Nínive apenas alguns anos depois da batalha em painéis de calcário, cada uma delas com altura superior a uma pessoa, esta obra emprega mais de uma dúzia de cenas em sequência, algumas descritas em legendas cuneiformes, para explicar a história da batalha. |
Ocasionalmente, a investigação arqueológica de Aruz ganhava um toque de Indiana Jones. Ao contrário do herói do cinema, no entanto, Aruz não tinha nenhum chicote nem macacos treinados, mas o prestígio de seu museu. Isso lhe garantiu com mais facilidade os diversos itens junto a museus que haviam emprestado objetos à instituição de Nova York para exposições anteriores, e também abriu novas portas, em um dos casos, literalmente. Ainda que o museu arqueológico de Granada esteja fechado por décadas, ela deixou essa inconveniência de lado e conseguiu ver peças sobre as quais tinha ouvido de alguns colegas: jarros de alabastro transportados para a Ibéria desde o Egito para servir como urnas funerárias em um cemitério fenício. Um dos jarros ainda exibia o rosto de Bes, deus do Antigo Egito invocado para a proteção de mães, crianças e famílias.
O Museu Britânico de Londres apresentou um desafio oposto. Com obras tão numerosas e enciclopédicas, muitas de suas antiguidades permanecem fora de vista, incluindo um banquete íntimo único do rei assírio Assurbanípal com sua consorte. Retratando o casal em seus tronos, ambos erguendo taças em forma de disco para brindarem a vitória do governante sobre o elamitas, essa escultura em gesso-alabastro é uma das poucas imagens que exibem potentados assírios não golpeando cabeças, caçando leões nem lançando olhares sinistros sobre seus súditos. (contudo, a cabeça decepada do rei elamita vencido oscila em um pinheiro nas proximidades, o que estraga um pouco o momento de tranquilidade, ao menos para os olhos modernos).
"Este painel de pedra estava escondido na sombra" – disse Aruz – "mas eu percebi na mesma hora que tínhamos que consegui-lo para a exposição."
Em Samos, a coleção de antiguidades despretensiosa revelou outra riqueza surpreendente. "O que é incrível aqui é que você caminha em um lugar que quase nunca foi visitado e está absolutamente repleto de artefatos do Oriente Próximo", observou a curadora. Praticamente todos eles desembarcaram na ilha como oferendas votivas para o templo santuário de Hera, a deusa grega das mulheres e do casamento (e a esposa de Zeus). Mercadores fenícios, mercenários gregos no exército assírio, emissários e peregrinos provenientes de todo o Oriente Próximo e o Mediterrâneo reuniam-se no santuário, conhecido como o Heraião, e suas doações suplicavam por favores da deusa.
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(COLAR) L’INSTITUT NATIONAL DU PATRIMOINE, TUNIS; (FRAGMENTO) METROPOLITAN MUSEUM OF ART; (VASO) BRUCE WHITE |
Da Assíria, Anatólia e Egito ao Norte da África, Grécia, Itália e Espanha vieram itens de artesanato cujos motivos orientais levam os historiadores a denominarem-nos motivos "orientalizantes", como este colar de ouro, acima à esquerda, proveniente de Cartago (hoje na Tunísia) com temas fenícios que data de meados do século VII ao VI AEC, e um fragmento cônico de um vaso grego para perfumes encontrado na Itália, datado de cerca de 700 AEC, no alto à direita. Acima à direita: desse mesmo período, e também encontrado na Itália, veio esta baixela de prata, gravada em relevo com frisos concêntricos de "motivos egípcios" que combinam uma variedade de temas do Oriente Próximo. |
Como resultado de origens tão difusas, alguns itens em Samos são como mistérios para detetives à espera de solução. Uma placa de bronze destinada a um peitoral ou uma testa equina retrata quatro figuras femininas e três cabeças de felinos. Uma inscrição em aramaico a descreve como um presente do rei Hazael de Aram-Damasco do século IX AEC. O curioso é que uma inscrição idêntica apareceu em uma outra viseira de bronze utilizada para proteger os olhos de um cavalo e descoberta a cerca de 325 quilômetros sob o mar Egeu na Erétria, norte de Atenas, onde havia devoção a outro santuário grego, o de Apolo, deus do Sol, das artes e da profecia. Aruz concluiu que ambos os itens originam-se provavelmente do mesmo conjunto.
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THE HISPANIC SOCIETY OF AMERICA |
Ao redor do século VII AEC, artesãos fenícios perto de Cádis e Sevilha incidiram e esculpiram vários objetos de marfim e osso em estilos do Oriente Próximo, incluindo esta placa de 13 centímetros, que exibe um grifo, um caçador e um leão. |
"Como isso poderia ter acontecido?", ela se perguntou em voz alta enquanto estudávamos os artefatos reunidos. É possível, ela propôs, que os assírios tenham levado o valioso conjunto de acessórios de luxo de Damasco de volta a sua capital Nimrud após derrotarem Hazael; de lá, mercenários gregos que lutaram para os assírios os levaram como presentes para os deuses ao retornarem para sua terra natal. Ou talvez, especulou, houvesse funcionários de santuários que viajavam, desenvolvendo uma rede, "da mesma forma como procuramos itens no eBay ou na Internet", em busca de itens valiosos para dedicarem a seus templos.
"Ambas as explicações podem ser verdadeiras", sugeriu a curadora. "É simplesmente fascinante especular por onde esses objetos podem ter viajado." De forma semelhante, uma estatueta em bronze de 13 centímetros de um mushushshu, um monstro-dragão mítico, também surgiu no Heraião da ilha de Samos. Por que uma besta sagrada para a divindade babilônica de Marduk, e provavelmente produzida na Babilônia, acabou sendo presenteada a uma deusa grega, mais de 1.500 quilômetros a oeste, segue sendo um enigma e também um símbolo de uma era de polinizações culturais cruzadas.
Esse tema da ampla dispersão de objetos similares percorreu toda a exposição. Duas baixelas de bronze, ambas de mais de 21 centímetros de diâmetro, finamente forjadas com esfinges símbolo da Assíria posando suas patas sobre as cabeças dos inimigos asiáticos derrotados, parecem tão praticamente idênticas que devem ter saído da mesma oficina fenícia. Mas uma foi desenterrada em Creta, e a outra foi encontrada em um palácio de Nimrud. É possível que ambas tenham sua origem na Fenícia, ou talvez um artesão itinerante fenício tenha se dirigido a Creta: a única coisa de que se tem certeza é que elas representam mais uma evidência de um mundo culturalmente entrelaçado.
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THE BRITISH MUSEUM |
Mostrando que a polinização cruzada não era algo exatamente novo nem mesmo na antiga Idade do Bronze, esta caixa de jogo em marfim que retrata uma caçada em carruagem data de 1250 a 1100 AEC. Encontrada no sítio arqueológico de Enkomi, no Chipre, ela exibe motivos e estilos egeu, cananeu, egípcio e mesopotâmico. |
Para os assírios, o sangrento negócio de batalhas, conquistas e saques era seu ponto forte; ao contrário da modéstia. Placas de pedra semelhantes a lajes, muitas da altura ou mais altas que uma pessoa, como uma presente na exposição que retrata um espírito guardião com cabeça de falcão e que um dia teve pintura em cores brilhantes, adornavam o Palácio Noroeste de Nimrud. Quase todas ostentam o que os estudiosos chamam de inscrição padrão em exaltação a Ashurnasirpal ii, "rei do mundo, rei da Assíria (...) o poderoso guerreiro (...) cujas mãos conquistaram todos os territórios".
Um desses territórios conquistados foi o reino de Urartu, no norte da Assíria, onde hoje é a parte oriental da Turquia e Armênia. Famosos por seu trabalho em metal, as armas, os capacetes e escudos provenientes de Urartu eram adornados com serpentes com cabeça de leão e árvores sagradas para afastar o mal em geral e seus inimigos assírios em particular. Batido, dobrado e rasgado com buracos abertos a golpes de lança, um magnífico escudo polido ilustrava na exposição uma lição na derrota. "Esta é só uma mostra do que deveria ter sido ir à guerra contra os assírios", observou Aruz enquanto admirávamos a armadura amassada.
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BRITISH MUSEUM |
"Uma estranha combinação de violência e delicadeza", disse a curadora Joan Aruz sobre esta placa em marfim, ouro e pedras semipreciosas do século IX AEC do palácio noroeste de Nimrud, exibida aqui um pouco maior do que seu tamanho natural, Embora neoassíria em sua origem, seu estilo é fenício e sua iconografia vem do Egito, onde tais imagens expressavam autoridade real sobre o território, aqui interpretado como a Núbia, devido ao penteado do jovem. |
Mas foi a descrição horripilante da batalha de Til Tuba, hoje o sul do Irã, o que mais fortemente marcou o caráter assírio de batalhas sem prisioneiros. Esse relevo panorâmico do tamanho de uma parede, com mais de 2 metros de altura e quase 5,5 metros de largura, detalha mais de uma dúzia de cenas brutais: em uma delas o rei elamita Teuman e seu filho mais velho são decapitados um em frente ao outro, cercados por um combate de carruagens e carnificina; em outra, os assírios forçam os aliados babilônicos dos elamitas a ficarem de joelhos para triturarem os ossos de seus próprios antepassados como forma de humilhação.
Cenas mais tranquilas da vida cotidiana não eram geralmente consideradas dignas do esforço de escultura: guerras, caçadas e invocação a deuses e monstros para proteção apotropaica eram a regra. É por isso que parece tão especial o quadro doméstico solitário, que exibe uma mulher sentada em uma cadeira sobre seus pés delicadamente dobrados e ostentando com orgulho um carretel de fios. Seu realismo e simples humanidade dão um raro vislumbre confidencial de um domínio privado no passado distante. Significativamente, a escultura de betume em relevo não é assíria, mas sim elamita.
Não menos incomum e envolvente é outro relevo em marfim que nos deteve por um instante: ele exibe um garoto núbio sendo devorado por uma leoa. "Há uma estranha combinação de violência e delicadeza na forma como a leoa envolve a cabeça do menino com sua pata, enquanto rasga sua garganta com os dentes", disse Aruz. Apesar de seu tema macabro, houve uma compaixão inefável para com o sacrifício do menino, como se houvesse ali algum significado místico à espera de ser desvendado.
Entre os maiores itens da exposição, dois imponentes monólitos de basalto provenientes do sítio sírio-hitita de Tell Halaf atestaram a persistência de uma equipe de restauração de Berlim, que enfrentou uma montanha de cerca de 30.000 fragmentos arqueológicos, os vestígios de cerca de 30 esculturas que se despedaçaram em um bombardeio durante a Segunda Guerra Mundial. Os estilhaços ficaram esquecidos nos porões do Museu Pergamon por quase seis décadas depois de as autoridades da Alemanha Oriental terem julgado as obras como irrecuperáveis.
No entanto, especialistas otimistas do país reunificado pensaram o contrário. Tratava-se, essencialmente, de uma série de gigantes quebra-cabeças em 3D, sem dúvida um trabalho menos complicado do que unir a dividida nação alemã, mas ainda assim monumental. Iniciando suas atividades em 2001 e concluindo-as nove anos mais tarde, os especialistas remontaram mais de 30 esculturas. Um homem-pássaro com rabo de escorpião, barba de destaque e 1,5 metro de altura guardava o Palácio Oriental do sítio, de forma muito parecida com as mais conhecidas sentinelas aladas de Nínive e os homens-escorpião que vigiavam de pé o nascer do Sol no épico mesopotâmico de Gilgamesh.
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STEFFEN SPITZNER/BPK/VORDERASIATISCHES MUSEUM, STAATLICHE MUSEEN ZU BERLIN/ART RESOURCE |
Uma das cerca de 30 esculturas sírio-hititas que levaram nove anos para serem reconstruídas após um bombardeio da Segunda Guerra Mundial, esta estátua em basalto do século IX AEC de um homem-pássaro com rabo de escorpião posicionava-se ao lado do "Portão do Escorpião" de um palácio em Tell Halaf, norte da Síria. |
Perto havia um pedaço claramente menos impressionante de basalto. Com pouco mais de um palmo de cada lado, a estela de aparência bastante comum acabou sendo um documento único de dramática importância histórica. Escrita em aramaico, o texto narra as conquistas do rei sírio Hazael no século IX AEC, e entre elas surge um descendente real da linhagem de Davi. Trata-se da única menção conhecida da dinastia davídica fora da Bíblia e a primeira prova arqueológica da existência histórica do rei David, fundador da tribo de Judá.
Entre os trabalhos mais delicados e impressionantemente atrativos da mostra estavam as Tridacna squamosa, ou conchas de moluscos gigantes, do tamanho de uma mão inteira e com um enorme grau de detalhes em suas incisões, que incluíam músicos, botões de lótus, palmeiras e – o que é incrível – homens em kilts montando alegremente cavalos adornados. A dobradiça de uma das conchas foi esculpida para se assemelhar à cabeça de uma mulher, ou talvez da deusa Astarte, com suas longas madeixas se transformando em penas à medida que percorriam como ondas a parte de trás, ao longo da concha . Outra concha possuía a incisão da cabeça de um homem-pássaro em seu topo, mergulhando suas asas gravadas no exterior da concha para abrigar um par de pequenas esfinges. As amêijoas Tridacna prosperam nas águas quentes do oceano Índico, golfo Pérsico e mar Vermelho, e suas conchas foram importadas ao longo de grandes distâncias para serem gravadas em oficinas do Levante. De lá, elas foram exportadas para todo o Oriente Próximo e Mediterrâneo como recipientes de luxo para cosméticos.
A mais divulgada façanha da curadoria envolveu, talvez sem causar surpresa, ouro. A aquisição de Aruz do tesouro de Carambolo do século VII AEC, emprestado de Sevilha, tornou-se manchetes de primeira página na Espanha. Pesando estupendos 2,4 quilos, o colar, braceletes e medalhas de ouro maciço foram itens usados por sacerdotes fenícios que presidiam rituais de sacrifício de animais para as divindades fenícias de Baal e Astarte pelos colonizadores de Spal, perto de onde hoje fica a moderna cidade de Sevilha.
Essas relíquias são tão valiosas que o museu arqueológico da cidade exibe réplicas, e os originais são mantidos no cofre do banco nacional. Quando Aruz insistiu que o Metropolitan aceitaria apenas os originais, as autoridades espanholas lhe abriram seus cofres e tornaram a mostra de Nova York uma rara ocasião em que o público teve permissão para vê-los.
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STAATLICHE MUSEEN ZU BERLIN/VORDERASIATISCHES MUSEUM |
Uma das cerca de 575 criaturas de proteção e simbólicas que adornavam a vitoriosa Porta de Ishtar da Babilônia, construída entre 604 e 562 AEC após a conquista da Babilônia pelos neoassírios, é um dragão mushhushshu, construído em tijolo moldado e vitrificado. |
Como qualquer outro poder, a dominação neoassíria não durou para sempre. Depois de dominar o Oriente Próximo durante séculos, o império outrora invencível foi fatalmente enfraquecido em meados do século VII AEC por uma guerra civil entre os irmãos rivais que governavam conjuntamente. Um deles, Assurbanipal, foi retratado na mostra em uma estela de pedra que carrega uma cesta de terra sobre a cabeça para simbolizar seu papel na reconstrução da Babilônia, depois que seu avô Senaqueribe havia impiedosamente saqueado a cidade cerca de duas décadas antes. A seu irmão mais velho Shamash-Shuma-ukin, nomeado por seu pai como rei de Babilônia, a inscrição prometia carinhosos desejos: "Que seus dias sejam longos e que ele possa estar plenamente satisfeito com a boa sorte (dele)".
Mas após 16 anos de poder compartilhado, Shamash-shuma-ukin revoltou-se contra seu irmão. Ashurbanipal montou um cerco de quatro anos à Babilônia, produzindo uma fome que levou os habitantes da cidade ao canibalismo. O irmão derrotado imolou a si próprio nas chamas de seu palácio incendiado em 648 AEC. Quase 36 anos depois, 612 AEC, a capital de Nínive de Ashurbanipal foi saqueada pelos babilônios em vingança. O Império Neoassírio deu lugar aos governantes neobabilônicos. Não muito tempo depois, estes também caíram para os persas, provocando mais uma queda de Babilônia em 539 AEC.
Cerca de 200 anos mais tarde, exércitos sob o comando de um guerreiro macedônio, mais tarde denominado Alexandre, o Grande, levou uma onda sem precedentes de conquistas gregas que varreram a região de oeste a leste, invertendo o fluxo de cultura e intercâmbio, e preparando o cenário mundial para o surgimento de culturas Clássicas ocidentais.
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Além de contribuir regularmente para a AramcoWorld, a partir de sua base em Paris, Richard Covington já escreveu sobre cultura, história e ciência para diversas publicações. |
www.metmuseum.org