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Homens trabalham em um barco de pesca em Bagamoyo, Tanzânia, local que por 600 anos serviu como um dos portais de passagem da África Oriental para o oceano Índico. |
Escrito por Amanda Leigh Lichtenstein
Fotografia de Mariella Furrer
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A maré de comércio da cidade pode retornar com os planos de desenvolvimento de um megaporto promovido por seu filho nativo, o presidente Jakaya Mrisho Kikwete.
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Na sinuosa estrada cravejada de palmeiras, a meio caminho de Dar es Salaam, norte de Bagamoyo, o tráfego é paralisado onde equipes têm trabalhado por todo o percurso desde a capital nas obras de duplicação da velha estrada de duas vias. Ônibus e automóveis negociam empoeiradas voltas e retornos enquanto a estrada se estreita e vales verdejantes se abrem e se aproximam de ambos os lados. Na cidade de Bagamoyo, pequenas lojas e galerias de arte pontilham as laterais das ruas; idosos usando kanzu e kofia passam com suas bicicletas velhas, enquanto aglomerados de homens jovens com bonés chamativos esperam na sombra com suas motocicletas. Mulheres envoltas em véus coloridos e vestidos brilhantes, outras em apertados jeans e camisetas, vagueiam em pares ou sozinhas pela rua carregando pacotes sobre suas cabeças. Ao longo da desordenada praia de areia branca de Bagamoyo, a maré desliza. Ao anoitecer, o lugar é tranquilo, e apenas um ocasional latido de cachorro interrompe o silêncio.
Na República Unida da Tanzânia, como é conhecida desde 1964, é período de eleições gerais, já que o segundo e último mandato de cinco anos do presidente Jakaya Mrisho Kikwete se encerra em outubro. Nos arredores, os apoiadores do partido de oposição Chadema buzinam e balançam as bandeiras azul, branca e vermelha de seus carros, como uma tentativa de marcar suas reivindicações aqui no local onde nasceu Kikwete, 70 quilômetros a norte da capital, Dar es Salaam. De fato, a maioria dos habitantes de Bagamoyo apoia o atual presidente como filho nativo e, de sua parte, Kikwete concentrou o final de seu mandato preparando sua amada cidade natal para um futuro sem precedentes ao estabelecer planos para um "megaporto" que competiria não só com os portos tanzanianos de Dar es Salaam, Tanga e Mtwara, mas também com os portos quenianos de Lamu e Mombasa e os faria parecer pequenos.
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Alguns quilômetros a sudeste de Bagamoyo, fica a mais antiga mesquita conhecida da África, Kaole, atualmente em ruínas, construída com pedras de coral por comerciantes que chegaram em 1250 ec de Xiraz (hoje no Irã). Seu comércio iniciou a ligação desta costa com a península Arábica, Pérsia, Índia e China. |
Embora pareça calma hoje em dia, Bagamoyo não é estranha a grandes mudanças. Localizada no distrito tanzaniano (costeiro) de Pwani, é uma cidade antiga com uma população estimada de 30 mil pessoas, alinhada com a histórica arquitetura inspirada por projetistas alemães, indianos e árabes, ao lado de um moderno e incipiente distrito comercial. Uma vez integrada à rede comercial da "costa suaíli", que se estendia por mais de mil quilômetros de Mogadishu, no centro da Somália, a Kilwa, no sul da Tanzânia, ela era também a conexão entre o interior da África e o restante do mundo através da ilha de Zanzibar, localizada a apenas 40 quilômetros da costa.
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Para o empresário de 34 anos Felix Nyakatale, cujo restaurante Poa Poa é uma história de sucesso de quatro anos, Bagamoyo parece "uma cidade fantasma à beira de um grande toque de despertar". Nascido e criado no noroeste da Tanzânia, terra do monte Kilimanjaro, ele veio para o litoral com um espírito pioneiro que percebeu uma oportunidade no crescente trânsito de turistas famintos por vitaminas, pizzas, peixes locais, saborosas caldeiradas e ugali (um tipo de angu quente e pastoso). Alto, magro e bonito, Nyakatale fala com suavidade e confiança sobre sua decisão de abrir um restaurante. "Não há nada parecido com isso aqui. As pessoas vêm até nós em busca de música e amigos."
Localizado no primeiro andar de um sobrado suaíli histórico e restaurado onde seu dono vive convenientemente no andar superior arejado, o Poa Poa representa tino comercial, risco e mudança social. "Todos vêm aqui", diz Nyakatale com orgulho. "Recebemos pessoas locais, fregueses regulares e também estrangeiros e turistas que vêm só de visita. É uma boa mistura. Estamos sempre muito ocupados." Para ele, os planos de desenvolvimento trazem esperança. "No ritmo em que Bagamoyo está crescendo, o Poa Poa vai prosperar. Nós inclusive construímos uma cozinha novinha em folha. Dê uma olhada."
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Construída por sultões de Omã baseados em Zanzibar, a antiga casa da alfândega foi utilizada posteriormente pela Alemanha, que tornou Bagamoyo sua sede na África Oriental em 1884. |
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"Nós recebemos bem desenvolvimentos de todo tipo, desde que haja um plano claro", afirma Abdallah Ulimwengu, da Associação de Guias Turísticos de Bagamoyo. |
Esta é uma das cidades mais antigas no mapa da Tanzânia. Sua origem precede o Périplo do Mar Eritreu, o guia para viagens marítimas entre China, Índia, África Oriental e Arábia, escrito por um navegante grego anônimo no século I ec. Já no período entre 600 e 800 ec, as tribos zaramu, zigua, doe e kwere de fala bantu viviam aqui, tendo se originado no interior daquilo que os exploradores iriam chamar depois de Azânia. Subsistindo de pesca, caça e coleta, eles e suas vidas foram perturbados em 1250 com a chegada de um grupo de famílias da cidade persa de Xiraz (atualmente no Irã). Atraídos pela terra fértil e ampla pesca, os "xirazes" estabeleceram um porto e um povoado alguns quilômetros a sudeste de Bagamoyo que hoje é conhecido como Kaole.
Atualmente em ruínas praticamente abandonadas entre turvos manguezais, Kaole evoca um momento histórico crítico, explica Abdallah Ulimwengu, secretário executivo da Associação de Guias Turísticos de Bagamoyo. Ele passeia pelos arcos em ruínas de uma mesquita há muito tempo abandonada e, com um olhar distante, destila a história complexa e manchada de Bagamoyo.
Ele diz que, embora a presença do Islã na África Oriental date oficialmente do século VII na Etiópia, a população proveniente de Xiraz representou a chegada dos primeiros muçulmanos a esta costa centro-meridional. Aqui, eles construíram as primeiras mesquitas da região com rochas de coral, nas quais inscreveram grosseira caligrafia árabe. Chegando com porcelana da China, joias e utensílios domésticos, os mercadores de Kaole passaram a exportar marfim, chifres de rinoceronte, peles de animais, cascos de tartaruga, adagas, baixelas e outros tesouros, geralmente para a cidade-Estado de Kilwa, 300 quilômetros ao sul e no limite meridional dos ventos de monção, cujos ciclos anuais impulsionavam o comércio marítimo do oceano Índico. Moedas de cobre cunhadas de Kilwa, com o nome do governante xiraz Ali ibn Al-Hassan, indicam a extensão do comércio ao longo destas margens. O próprio nome Kaole – aponta Ulimwengu com um sorriso – vem da expressão bantu chite kalole mwaarabu vitandile, que significa algo como "vamos lá ver o que os árabes estão fazendo".
Kilwa prosperou como um centro de comércio até a entrada do século XVI. A caminho da Índia, o explorador português Vasco da Gama chegou à costa suaíli no início de 1498 e foi seguido por Francisco de Almeida, que dizem ter saqueado Kilwa em 1505. Logo depois, os portugueses conquistaram com facilidade Kaole, que ingressou em 150 anos de domínio notoriamente implacável.
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Na cidade, o velho mercado de escravos se tornou o Mercado de Artes de Bagamoyo, mantido pela comunidade artística da cidade organizada em torno do Instituto de Artes e Cultura de Bagamoyo, onde se ensina pintura, escultura, dramatização, dança e percussão tanzanianas. |
Em 1698, o sultão de Omã Saif bin Sultan reivindicou a costa travando e vencendo a batalha no Forte Jesus em Mombaça, Quênia. Pouco tempo depois, Omã assumiu o poder sobre grande parte da costa suaíli, incluindo as ilhas de Zanzibar. Para garantir Kaole, o sultão comandou colonos persas shomvi do norte da costa suaíli e contratou mercenários nômades balúchis do Paquistão. Kaole se estabilizou, mas não por muito tempo.
De acordo com Ulimwengu, uma "invasão de manguezais rebeldes" provocou a morte gradual do lugar. Hoje com cerca de 40 anos de idade, ele gastou seus últimos 15 anos desatando o passado de Bagamoyo. Originário da região tanzaniana de Kigoma, Ulimwengu veio a Bagamoyo depois de viver por muitos anos na África do Sul, e diz ter sido imediatamente atraído pelas histórias que estão enterradas aqui.
"Outros dizem que o crescimento da cidade vizinha de Dunde ofuscou Kaole como porto central, mas eu acho que foram os manguezais", diz ele, apontando para uma área pantanosa próxima. "Não há como os barcos chegarem ao litoral dessa forma." Ao longo dos 200 anos seguintes, sultões de Omã ascenderam e caíram à medida que as dinastias mudavam, e Kaole caiu em desuso, foi esquecida.
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Exibidas aqui como tema de pinturas locais em uma loja de arte, as viagens significam muito para a história de Bagamoyo, cujo nome poeticamente ambíguo significa ao mesmo tempo "aliviar" e "desistir" de seu coração, porta de passagem para o leste através do oceano Índico e a oeste para dentro e fora do continente. |
Por volta dos anos 1830, o sultão Said bin Sultan mudou sua corte de Mascate, em Omã, para a Cidade de Pedra de Zanzibar. Com sua morte em 1856, seu filho Majid bin Sultan continuou governando Zanzibar e, de lá, supervisionou um comércio de escravos e marfim que dependia de Bagamoyo como um portão de saída e entrada para o interior Africano. Em meados do século e por alguns anos além, um número estimado de 20.000 a 50.000 escravos (além de enormes quantidades de marfim, em grande parte carregadas por cativos) transitou anualmente por Bagamoyo. Ainda que poucos tenham permanecido para servir a elite de Bagamoyo, a vasta maioria foi enviada para Zanzibar, onde trabalhava em plantações de cravo ou açúcar, ou serviam de empregados domésticos; muitos outros foram enviados mais longe, para o Oriente Médio e subcontinente indiano.
Nessa época, o porto mudou de Kaole para o que hoje é conhecido como mji mkongwe, "cidade velha", onde atualmente construções árabes, alemãs e indianas, em estados de decrepitude e restauração variados, ainda se alinham à estrada de paralelepípedos que corre paralela ao mar através de três bairros. Ulimwengu conhece cada construção em ruínas ao longo dessa via onde homens jovens sobre motocicletas conversam em grupos à beira da estrada, esperando por passageiros.
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Felix Nyakatale senta-se do lado de fora do seu restaurante de quatro anos de idade, o Poa Poa, e recebe bem a perspectiva de construção de um porto. "Eu estou confiante de que Bagamoyo é uma cidade que irá crescer", diz. |
"A maioria da juventude daqui não tem a menor ideia desta história." Uma rua acima, em outra estrada ensolarada e empoeirada, Ulimwengu aponta para artistas locais que transformaram o pavilhão de madeira que um dia foi o mercado de escravos em uma galeria aberta que exibe pinturas, esculturas e entalhes em madeira. Segundo ele, a galeria expressa um desejo coletivo dos jovens artistas de Bagamoyo de unir-se à grande economia mundial, enquanto vozes da história ainda parecem ecoar em cada esquina.
Em 1845, os britânicos patrulhavam o oceano Índico. O movimento global pela abolição levou à proibição do tráfico de escravos no oceano Índico, que foi oficialmente encerrado em 1873 quando foi abolido em Zanzibar. Realocados, centenas de ex-escravos e seus familiares procuravam trabalho e tentavam receber a educação que estivesse a seu alcance. Missionários católicos franceses e britânicos estabeleceram escolas em Zanzibar em 1860, e em Bagamoyo em 1868. O sultão e xeques locais costumavam receber bem essas missões naquilo que os historiadores veem como um misto de concessão estratégica e tolerância religiosa.
Em 1884, a Alemanha estabeleceu governo administrativo sobre a Tanzânia continental, que na época se chamava Tanganica e estabeleceu sua capital colonial em Bagamoyo, e a partir dali, ameaçou o poder do Omã em Zanzibar. Com o governo alemão, veio a taxação e, com ela, a resistência: em 1889, Bushiri bin Saleim al Harth liderou uma rebelião mal-sucedida às margens de Bagamoyo que se tornou conhecida como a Guerra de Bushiri.
Embora Bagamoyo tenha se tornado o porto e a capital mais importante da África Oriental germânica, os alemães decidiram mover em 1891 seu porto para o sul, a Dar es Salaam, mas mantendo a sede administrativa em Bagamoyo. Alguns dizem que Dar es Salaam poderia acomodar embarcações maiores, mas Ulimwengu também sugere que os alemães ficaram intimidados por Bushiri que vinha do distrito de Pangini ao norte de Bagamoyo e Dar es Salaam, muito mais ao sul, oferecia um território politicamente mais seguro.
Sob a administração alemã, os habitantes de Bagamoyo continuaram a subsistir de plantações, da pesca e da construção de dhows (pequenos barcos a vela tradicionais árabes) em uma série de aldeias à beira-mar no que é hoje o distrito da grande Bagamoyo. Os sultões de Omã continuavam governando do outro lado do canal, em Zanzibar, e os dois poderes entraram em um acordo que estendia o governo dos sultões a 16 quilômetros terra adentro a partir da costa de Bagamoyo.
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No alto: uma cerca mantém os visitantes distantes durante a restauração da sede de 1897 da administração colonial alemã. No centro: o que é conhecido como Velho Forte é a construção sobrevivente mais antiga, construída em 1860 como uma residência privada, depois tomada e fortificada em 1870 pelo sultão Barghash ibn Said de Zanzibar. Duas décadas mais tarde, os alemães a utilizavam como campo militar; posteriormente, os britânicos estabeleceram lá sua polícia; e hoje em dia, ele hospeda o Departamento de Antiguidades da cidade. Acima: com um minarete hexagonal, a mesquita de Gongoni, datada de meados do século XIX, é a mais antiga mesquita em atividade. |
Após a derrota alemã na Primeira Guerra Mundial, Bagamoyo novamente enfrentou mudanças sob controle britânico. As ruas tiveram seu nome alterado. Novas estradas e ferrovias foram construídas. Depois de 43 anos, em 1961, Tanganica negociou sua independência da Grã-Bretanha e, em 1964, uniu-se a Zanzibar sob um nome que reconhecia ambos os territórios: "Tanzânia." Seu primeiro presidente, Julius Nyerere, era referido com devoção como mwalimu (professor) e viajou a Bagamoyo no início de seu mandato presidencial para promover a autodeterminação e o Ujamaa, o movimento socialista que definiu o futuro da Tanzânia. Logo depois, Bagamoyo passou a ter um centro de treinamento, localizado na estrada entre Bagamoyo e a velha Kaole, para soldados da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), a qual reivindicou a independência de Moçambique, vizinha meridional da Tanzania, do domínio português que vigorava sobre a região.
Hoje, 51 anos depois da independência da Tanzânia, os habitantes de Bagamoyo estão mais uma vez diante do que pode vir a ser uma grande mudança de maré, nos sentidos metafórico e literal da expressão. No ano passado, o presidente Kikwete aprovou 16 iniciativas de desenvolvimento no valor total de US$ 800 milhões em parceria com Xi Jinping, presidente da República Popular da China. Segundo as bases do acordo de 30 anos assinado em março de 2013, esses projetos prometem alterar completamente a economia de Bagamoyo, seu litoral e até mesmo seu ecossistema com o maior porto já construído na África Oriental, um aeroporto internacional e um parque industrial.
Como ainda não houve nenhum efeito prático, parece que os habitantes da cidade mantêm-se relativamente incrédulos a respeito dos planos reais para além da notícia divulgada no jornal The Citizen ou do boca a boca. No entanto, líderes locais têm sido informados, ativistas comunitários têm participado de reuniões, e algumas propriedades marcadas para desapropriação foram avaliadas para o pagamento de indenizações. De acordo com o escritório de Kikwete, a construção do porto será iniciada em 1.° de julho.
Os planos do megaporto geraram ansiedade e excitação. O consórcio queniano Trademark East Africa observa que o empreendimento irá "inclinar a balança do comércio regional a favor da Tanzânia", ainda que moradores como Anthony George Nyanga, um líder comunitário de meia idade que relaxa em uma cadeira de plástico com uma Fanta gelada após um dia de trabalho, confesse estar preocupado que o porto ofusque as necessidades da população local. "Nossos jovens... Precisamos criar mais empregos para eles, dar-lhes mais oportunidades. Nosso sistema de educação enfrenta terríveis desafios. Para ter sucesso, você deve se preocupar não só consigo mesmo; deve se preocupar com a sua comunidade." Mas Felix Nyakatale do restaurante Poa Poa não está tão preocupado. "Eu estou confiante de que Bagamoyo é uma cidade que irá crescer", ele insiste. "Estou pensando em como manter as pessoas vindo ao meu restaurante."
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Testemunho estilístico do comércio realizado no oceano Índico, uma porta de madeira com rosetas vegetais e arabescos talhados exibe padrões que em muito se assemelham a inúmeros outros provenientes da península Arábica à Índia. |
Isso provavelmente não será tão difícil: estima-se que, com cerca de cinco quilômetros de extensão e 1,5 quilômetro em direção ao interior, em sua versão mais grandiosa, o porto de Bagamoyo lidará com mais de 20 milhões de contêineres anualmente. (como comparação, Dar es Salaam lida atualmente com uma quantidade anual de contêineres que vai de 500 mil a 800 mil; os volumes de Tanga e Mtwara são ainda menores). De acordo com o jornal The Guardian, o megaporto facilitará não só "embarques para a China" a partir da Tanzânia, mas também embarques de minerais sob demanda extraídos da Zâmbia, do Zimbábue e da República Democrática do Congo (rdc), além do comércio de exportação entre o Malaui e Burundi.
Com o fluxo previsto de mercadorias, serviços e recursos humanos, os habitantes de Bagamoyo se esforçam para entender seu alcance e escala. A cidade é parte do distrito de Bagamoyo, com suas 16 subdivisões administrativas, localizado na região de Pwani e com uma população total de pouco mais de 350 mil pessoas. O que mais surge em seu pensamento são dúvidas, diz Terri Place, uma norte-americana pensativa e de fala tranquila que vive em Bagamoyo há 20 anos e dirige a escola e orfanato The Baobab Home. Ela se faz perguntas sobre a concorrência local, como o que aconteceu com um projeto recente de biocombustível, que inflamou disputas de terra entre agricultores locais e investidores estrangeiros. "Essa parceria privada concederá à China autonomia excessiva?", ela reflete. "E se os chineses usarem uma parte da costa como base militar como a que possuem no Paquistão?" (ainda que os oficiais chineses tenham negado veementemente esse rumor, ele permanece na cabeça dos habitantes). E principalmente, diz, todos estão se perguntando onde exatamente será construído o novo megaporto.
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Líder conservacionista do Departamento de Antiguidades de Bagamoyo, Benedicto Jagadi lembra o provérbio que diz que o povo deve conhecer sua história para conhecer seu futuro. |
Ainda que repleto de incertezas, o recentemente lançado plano diretor da Zona Econômica Especial de Bagamoyo mostra o megaporto abrangendo cerca de cinco quilômetros do litoral, de Mlingotini a Mbegani, o que causaria impactos a pelo menos seis pequenas aldeias de pescadores e agricultores pelo caminho. Essa aldeias, assim como Pande, Konde e Zinga, já foram pesquisadas e avaliadas. Rajab Rajab um pescador de 40 anos e antigo morador de Mlingotini, aldeia com apenas dois mil habitantes, senta-se sobre um banco de madeira desgastado com os dedos cavando a areia. Ele explica que não há um único dia em que os moradores não especulem sobre como a aldeia irá mudar. Rajab diz que, provavelmente, o novo porto cobrirá pelo menos metade de Mlingotini, e isso alteraria o relacionamento de todos com a baía de Waso, o trecho de mar localizado entre Mlingotini e Mbegani onde por centenas de anos os habitantes da costa aperfeiçoaram a arte da pesca e da construção de dhows.
Isso, diz, pode trazer oportunidades também. Ele é parceiro da Ecoturismo Sustentável para a Mitigação da Pobreza e Conservação da Biodiversidade, iniciativa do Conselho Distrital de Bagamoyo, que busca aumentar o emprego "trabalhando com o setor de turismo para compreender a vida marinha" por meio de pesquisa e mergulho. Rajab, que cumprimenta todos que encontra pela estrada de areia, orgulha-se de sua relação herdada com o oceano e de todos os seus costumes e tradições relacionados com seu estilo de vida. Ele sabe que o porto exigirá a realização de dragagem para possibilitar o atracamento de grandes navios, e sabe que isso agitará os sedimentos do fundo do mar, o que poderia sufocar os arrecifes de coral. Somando-se isso às atuais práticas prejudiciais como a pesca com explosivos, além da poluição de maneira geral, Rajab tem consciência de como as mudanças trazidas pelo megaporto perturbarão irremediavelmente o relacionamento entre as pessoas, a terra e o mar. "Nossos anciãos convocaram diversas reuniões, e discutimos essa questão em comunidade, mas ainda não estamos seguros", disse.
Alguns quilômetros ao norte de Mlingotini, topógrafos governamentais avaliaram as aldeias de Mbegani e Pande, onde Hassan Alawi, um pescador de 38 anos, caminha confortavelmente descalço no calor do meio-dia. Ele diz que sua casa modesta e diversas árvores frutíferas já passaram por duas avaliações, uma em 2011, pela Autoridade da Zona de Processamento Econômico, e a última em março, pela Autoridade Portuária da Tanzânia (Tanzania Port Authority, tpa), que agora está a cargo do projeto do megaporto. Alawi e sua aldeia de aproximadamente 700 habitantes dizem que a tpa lhes informou que uma mudança é iminente e que a indenização será generosa: pelo menos 10 milhões de xelins (aproximadamente US$ 6.000) por hectare, além de um adicional pela casa e pelas árvores frutíferas. Alawi acredita que a mudança trará trabalho para sua comunidade em dificuldades. Ele espera que "possamos todos nos mudar juntos como uma aldeia, uma família".
Também está previsto o deslocamento da Faculdade da Tanzânia para o Avanço da Pesca, que atualmente se localiza onde está prevista a construção de grande parte do megaempreendimento. Estabelecida em 1966, a faculdade é agora a instituição governamental oficial tanzaniana para todo treinamento e formação educacional relativos à pesca. Abdillahi Kamota, diretor de apoio a empresas atuantes, afirma que a faculdade está pronta para se mudar, e ele está ansioso para ver confirmados os planos de projeto. Kamota espera que o porto gere empregos para os 400 alunos da faculdade, e gostaria de ver a construção de um "megaflutuador" equipado com dispositivos de atração de peixes de última geração, que – ele sustenta – aumentaria a competitividade local nos mercados regional e internacional. Kamota diz que "não tem medo da mudança". Ele está confiante que, se tiver de se mudar, será para "instalações ainda melhores".
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Ao sul de Bagamoyo, crianças brincam na aldeia de Mlingotini na borda do trecho de cinco quilômetros da costa onde está prevista a construção do megaporto. O crescimento da área já é evidenciado por novos apartamentos (abaixo à direita). |
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Acima: Uma casa em Mlingotini. De acordo com o quadro de avisos do Departamento de Planejamento Urbano de Bagamoyo, até 321 moradores de quatro aldeias já foram indenizados por realocações não reveladas. |
De fato, de acordo com o quadro de avisos do Departamento de Planejamento Urbano de Bagamoyo, até 321 moradores de quatro aldeias já foram indenizados por realocações não reveladas. Em meio a uma grande quantidade de pratos de arroz e carne preparados durante um dia no Dee's, um local popular na parte mais nova de Bagamoyo, o historiador Ulimwengu insiste: "Recebemos bem desenvolvimentos de todo tipo, desde que haja um plano claro". Contudo, ele está preocupado com a proteção de locais de patrimônio, construções históricas e ecossistemas diversificados. "Não podemos recusar as fábricas e o porto, pois precisamos de trabalho", ele explica, acrescentando contudo que a legislação – como a Lei de Antiguidades de 1979 – deve ser cumprida.
Benedicto Jagadi, colega de Ulimwengu e líder conservacionista do Departamento de Antiguidades de Bagamoyo, parte integrante do Ministério de Recursos Naturais e Turismo, lembra o provérbio que diz que o povo deve conhecer sua história para conhecer seu futuro. Sentado em seu pequeno escritório localizado dentro do Velho Forte e com vista para a estrada principal da cidade velha, ele retira seu livro de consultas ao explicar a legislação tanzaniana. Apontando para códigos específicos, Jagadi explica que a lei define todo edifício construído antes de 1860 como "histórico", além de qualquer edifício erguido após 1860 que, ainda assim, tenha valor histórico. Jagadi está confiante de que áreas protegidas como as ruínas de Kaole e a cidade velha não serão, portanto, afetadas. Outros não estão tão convencidos disso.
O ancião e líder comunitário Hatibu Bakari, nascido em Bagamoyo no ano de 1925, lembra-se de épocas passadas com seu amigo Mohammed Issa Mitoso, nascido em 1939 e que vive perto da Escola Rammiyya de Estudos Islâmicos, localizada em uma vizinhança conhecida como "Rammiyya B.". Ao meio-dia, os dois se sentam em cadeiras de veludo vermelho desbotado na pequena e escura sala de estar da casa em estilo clássico suaíli de Bakari. Do lado de fora, sua esposa espanta uma galinha cacarejante e esvazia a água de uma banheira de plástico sob sol forte. Dentro, Bakari e Mitoso recordam o que dizem ser uma época de paz, respeito e confiança. Bakari se lembra de quando todos "deixavam suas portas abertas, e os filhos ainda temiam seus pais". Mitoso concorda. "Já não se diz mais 'obrigado' aqui; é só 'me dá agora'". Mitoso atribui sua nostalgia a uma Bagamoyo mais alinhada aos valores e tradições culturais suaílis, incluindo ustarabu (civilidade), ukarimu (hospitalidade), upole (gentileza), samehe (perdão) e subira (paciência). "A mudança requer uma grande dose de paciência", afirma Mitoso. "E aqui em Bagamoyo as mudanças estão acontecendo muito rapidamente."
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Ele mesmo um músico, Abu Juma vende tambores para colegas músicos de Bagamoyo e também para turistas. Posando com 10 das crianças de que cuidam na The Baobab Home, Terri Place e Caito Mwandu também conduzem grupos de saúde para famílias e crianças. |
A geração mais jovem de Bagamoyo tem uma história diferente para contar. Ansiosos por mudança, muitos jovens citam o emprego como a maior dificuldade enfrentada por sua geração. Shafee (18) ganha a vida pilotando uma bajaj, a econômica motocicleta coberta de três rodas. Ele pega passageiros com um sorriso simpático mesmo à noite, nas horas mais escuras, e está sempre à disposição, para dar conta das despesas no final do mês. Circulando por toda a cidade há mais de um ano, ele conhece bem as ruas esburacadas e mal conservadas de Bagamoyo. "Eu venho de uma família muito pobre" – diz – com poucos meios para pagar por educação e ainda menos oportunidades ou conexões para encontrar trabalho. "Ensine-me inglês", ele diz. "Eu preciso praticar para poder falar melhor com os meus passageiros." Estudante motivado, ele mantém em seu bolso traseiro um bloco para anotar palavras em inglês. Shafee admite saber pouco sobre o megaporto; ele apenas deseja "encontrar a minha vida" e deixar sua família orgulhosa por vê-lo ganhar um rendimento decente.
Outros jovens tanzanianos migraram para Bagamoyo nos últimos anos na esperança de se beneficiarem com os empregos gerados pela construção do porto e da ferrovia, além de novos restaurantes e hotéis que se anteciparam para acompanhar um crescimento nos negócios e no turismo. Emma Mihayo, uma planejadora do Escritório de Planejamento Urbano de Bagamoyo, informa de sua sala apertada e mesa cheia de documentos oficiais que centenas de novos habitantes, muitos deles de Dar es Salaam, Zanzibar e Tanga, costumam chegar com uma mão na frente e outra atrás às extensas florestas e fazendas de Bagamoyo. Emma diz que ela e dois de seus colegas recebem consultas diárias sobre iminentes realocações. Ela diz que as pessoas mais pobres são as mais ansiosas, e acrescenta que ainda não está claro exatamente para onde irão os moradores e se serão ou não capazes de se mover como aldeias inteiras ou se serão dispersados conforme as terras disponíveis.
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Posando com 10 das crianças de que cuidam na The Baobab Home, Terri Place e Caito Mwandu também conduzem grupos de saúde para famílias e crianças. |
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Todas as práticas tradicionais, como pesca, agricultura, plantação de coco, mandioca ou banana, interessam cada vez menos à população majoritariamente jovem. Rajubu Vwai (no alto) cresceu como pescador e agricultor em Mlingotini, mas se inscreveu recentemente para um curso de guia turístico. O motorista de "bajaj" de 18 anos Shafee (acima), conhece cada rua e canto de Bagamoyo. "Eu venho de uma família muito pobre", ele diz, acrescentando que deixar sua família orgulhosa ganhando um rendimento decente vem em primeiro lugar. |
Os jovens estão abandonando cada vez mais o trabalho tradicional das aldeias, como pesca, agricultura, plantação de coco, mandioca e banana, e preferem buscar opções aparentemente mais promissoras, como trabalhar como motorista, em hotéis, resorts turísticos ou restaurantes em Dar es Salaam e Zanzibar.
Isso preocupa Rajab de Mlingotini, pois nota que "a juventude está se esquecendo de seus antigos vínculos com a terra e o mar, e isso se tornou a nossa cultura". Desconectados do passado e ainda incertos sobre o futuro, muitos jovens de Bagamoyo parecem ter opções limitadas enquanto esperam por essas mudanças aparentemente iminentes.
Vitali Maembe, um ativista, músico e educador de cerca de 30 anos, iniciou a Aldeia de Artes Jua (Sol) para ajudar que jovens encontrem sua verdadeira expressão e se conectem com a tradição através da arte. Em uma casa alugada com vista para um campo, jovens se reúnem para aprender e tocar música moderna e também tradicional. Depois de praticar duas ou três vezes por semana, a banda formada de forma espontânea fala dos problemas que a juventude atual enfrenta entre chai e biscoitos. Cartazes feitos a mão e colados nas paredes com fita adesiva explicam palavras como "democracia" e "unidade". No meio da conversa, eles eventualmente praticam solos de guitarra e rufos de bateria.
Neste período eleitoral, Maembe, um guitarrista e cantor folk bem conhecido por suas campanhas musicais sinceras contra a corrupção, tem sido abordado tanto por partidos do governo como da oposição para promover suas campanhas. Maembe recusou todas as propostas, dizendo que "prefiro ser um artista independente, cantando de forma sincera sobre o que eu acredito".
Trabalhar para manter as meninas na escola e os meninos foras das ruas é uma de suas paixões, e por meio de festivais, oficinas e diálogos individuais, ele é um grande exemplo do potencial de Bagamoyo para aproveitar a energia da juventude que pode colocar a cidade de volta no mapa, não apenas como um centro comercial e de transporte, mas também como um centro de artes e cultura. Ele espera que, com a presença da única faculdade de artes cênicas da Tanzânia, o Instituto de Artes e Cultura de Bagamoyo, a cidade seja erguida também sobre os pilares da cultura tradicional.
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Fundador da Aldeia de Artes Jua (Sol), que oferece arte, dança e música a crianças e jovens, Vitali Maembe toca guitarra e canta com seus alunos. Músico respeitado, ele cria um som ao mesmo tempo tanzaniano e universal que aborda as tensões históricas de Bagamoyo entre o distante e o local, a tradição e a mudança. |
Enquanto jovens cantam e colocam para fora suas emoções na varanda ao pôr do sol, dhows de pesca flutuam sobre o mar... Nenhum se afasta de suas âncoras enferrujadas. Ao amanhecer, pescadores com camisetas desbotadas e manchadas de óleo, e calças largas e arregaçadas caminham lentamente ao longo da praia. Homens jovens também passam, vendendo lanches transportados em sacos plásticos de arroz gastos.
Olhando para longe no horizonte, é difícil imaginar como esta pequena cidade hoje tranquila pode em breve ser catapultada para o futuro como um centro de comércio transoceânico, muito mais distante do que qualquer governante xiraz, português, alemão ou britânico possa ter um dia imaginado. Enquanto Bagamoyo se prepara para mais um período de mudança histórica, o funcionamento das marés do oceano Índico acalma a ansiedade coletiva. Com os grandes projetos de Kikwete em andamento, parece que é apenas uma questão de tempo para que os habitantes façam parte de uma nova matriz geopolítica, e ninguém sabe ainda quantos outros corações serão aliviados, ou quantos desistirão nesta histórica faixa litorânea.
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Amanda Leigh Lichtenstein (@travelfarnow; www.travelfarnow.com) é poetisa, escritora e educadora. Seus ensaios sobre artes e cultura são publicados principalmente em Selamta, Contrary, Mambo e Addis Rumble. Atualmente, ela está trabalhando em uma coleção de ensaios sobre Zanzibar, além de dirigir um projeto de escrita criativa de meninas do sul da Etiópia. |
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Mariella Furrer (mariellafurrer.com) é uma fotojornalista baseada entre o Quênia e a África do Sul. De descendência suíço-libanesa, ela cresceu na África do Sul e realiza coberturas sobre a África, a Europa e o Oriente Médio para jornais, revistas, livros, organizações sem fins lucrativos e corporações. Neste ano, ela fez parte do júri do concurso anual World Press Photo. |