Volume 63, Número 5Setembro/Outubro de 2012

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Ksar Aqil é quase um mito entre os arqueólogos da pré-história, mas o sítio arqueológico é pouco conhecido pelos leigos. Constituído por camadas e camadas de ferramentas, ossos de animais e restos de fogueiras pré-históricos, que datam de 60.000 a 15.000 anos atrás, ele é um dos sítios da Idade da Pedra com maior ocupação na região do Levante e, talvez, no mundo. A história do Ksar Aqil é resultado da migração dos homens modernos vindos da África e do Oriente Próximo, como se ele fosse uma ponte entre continentes e culturas, mas resulta também de quase um século de pesquisa científica.

O povo ahmariano, cuja cultura durou 14.000 anos (entre 41.000 e 26.000 anos atrás), viveu no Ksar Aqil. Os arqueólogos recuperaram milhares de pontas de projéteis, ferramentas de raspagem e facas das escavações.

Apesar de abranger dezenas de milhares de anos de pré-história, o Ksar Aqil entrou para os registros históricos apenas na década de 20, quando os proprietários do local começaram a escavar uma saliência em um alto penhasco de calcário, procurando por tesouros. Essa saliência, situada ao pé das montanhas libanesas, próximas à atual cidade de Antelias, formava o que os arqueólogos chamam de um abrigo rochoso. A tentativa de encontrar ouro e prata não foi bem sucedida, mas os escavadores descobriram um dos sítios paleológicos mais importantes do Oriente Próximo.

A descoberta de artefatos que pareciam ter sido fabricados por "homens das cavernas" em Ksar Aqil levou o naturalista Alfred Day, da Universidade Americana de Beirute, a examinar o sítio em 1922, o ano que também testemunhou a descoberta da tumba de Tutancâmon por Howard Carter e pelo Lorde Carnarvon. Ao investigar o fosso dos caçadores, na parede ao fundo do abrigo, Day encontrou cerca de 2000 artefatos de osso e em sílex. A notícia da descoberta acabou vazando da região e chegou até a maior autoridade em arte em cavernas do período paleolítico, Abbé Henri Breuil do Collège de France, que propôs um exame mais detalhado do sítio.

Em 1937, um pequeno time de arqueólogos jesuítas seguiu o conselho de Abbé Breuil e deu início aos trabalhos de campo. A expedição foi liderada pelo Padre Joseph Doherty, de 33 anos, do Boston College em Massachusetts, que naquela época estudava na Universidade de Cambridge sob tutela da grande dame da pré-história do Oriente Próximo, Dorothy Garrod. Outros participantes incluíam o paleoantropólogo Padre J. Franklin Ewing, que mais tarde passou a dar aulas na Universidade de Fordham, bem como os Padres George Mahan e Joseph Murphy do Pontifício Instituto Bíblico de Jerusalém. Durante as escavações, cujo trabalho físico foi executado por trabalhadores libaneses, impressionantes 23 metros (75 pés) de pedra foram escavados, peneirados e selecionados.

Hadi Choueiry
Abrigado dos ventos do norte e voltado para o sudeste, o Ksar Aqil está situado entre o litoral e as montanhas. Essa localização oferecia a seus habitantes proteção e uma abundante variedade de recursos.

O Padre Doherty não estava preparado para seu encontro com o Líbano de 1930 — ou com o Ksar Aqil, o qual ele visitou pela primeira vez em 4 de abril de 1937. Apenas dois dias depois ele escreveu: “o vale de Antelias, próximo ao sítio, é o país mais selvagem que já vi. Lembre-se de imagens que você tenha visto dos locais selvagens do Afeganistão e da fronteira noroeste da Índia, próximo da passagem de Khyber — por exemplo em ‘Lanceiros da Índia’ — e você terá uma imagem bem precisa”.

Dois meses depois de chegar ao sítio, os jesuítas haviam erguido uma casa para armazenar e analisar os produtos da escavação, com áreas de trabalho, banheiro, cozinha e dormitório para seis pessoas. Eles empregaram mais de 30 trabalhadores locais, que recebiam 50 piastras por dia para executar trabalhos manuais tais como escavar e peneirar os sedimentos em busca de artefatos. O volume do material escavado logo tomou proporções gigantescas, levando Doherty a comentar que: “só um jesuíta pensaria em se encarregar de um trabalho dessa magnitude com uma bolsa de $1.750 ($28.000 em moeda atual), incluindo despesas com viagem e custo de vida…”. O eminente jesuíta francês Pierre Teilhard de Chardin, também paleontólogo e geólogo, orientou os jovens jesuítas que escavavam o Ksar Aqil entre as décadas de 30 e 40 e comentou ironicamente: “Vocês começaram uma tarefa de estudante e se depararam com um trabalho de homem”.

As escavações do Boston College descobriram milhões de artefatos, um número impressionante para qualquer sítio arqueológico. Esses artefatos eram feitos principalmente em sílex, matéria prima facilmente encontrada nos leitos de rocha calcária do Líbano, mas incluíam também muitos ossos de animais, pérolas de conchas marítimas, pontas de projéteis e perfuradores de osso e de chifre, vários objetos decorados e corantes ocres. Como era de se esperar, essa preciosa descoberta de artefatos do paleolítico levou quase 90 anos para ser totalmente relatada, mas esses estudos não exauriram o potencial do sítio. Corine Yazbeck, da Universidade do Líbano, espera continuar o trabalho de campo no futuro, observando que: “o Ksar Aqil é o sítio pré-histórico mais importante do Líbano e contém a maior sequência de ocupações do Paleolítico Superior no Oriente Próximo.”

As atuais perspectivas da evolução humana e da colonização do globo pelo homem estão baseadas em evidência fóssil, nos artefatos escavados e em dados biogenéticos. Essas linhas de questionamento indicam uma evolução relativamente recente dos homens modernos, os Homo sapiens sapiens, na África cerca de 200.000 anos atrás.

A ferramenta analítica mais recente disponível para aqueles que investigam as origens do homem, e provavelmente mais poderosa, vem da biologia molecular. Geneticistas descobriram que o exame do DNA de minúsculas estruturas celulares chamadas mitocôndrias era uma forma de medir as relações biogenéticas humanas em uma escala de tempo que abrange milhares de anos. As mitocôndrias são conhecidas por serem as fontes de energia da célula, já que elas geram energia química. Elas possuem seu próprio genoma e o DNA mitocondrial (mtDNA) é herdado exclusivamente da mãe.

Resultados impressionantes foram divulgados em 1987, por pesquisadores da Universidade de Berkley na Califórnia e mostravam que as sequências de mtDNA eram muito diversificadas nos povos africanos. Esses povos, tais como os Kalahari San, possuem as linhagens genéticas mais antigas do planeta. Eles acumularam mudanças evolutivas durante mais tempo. O estudo indicou que todo o mtDNA presente atualmente nas pessoas deriva de uma única mulher que viveu cerca de 200.000 anos atrás na África. Essa mulher foi chamada de “Eva Mitocondrial”, a mãe genética de toda a população terrestre atual.

Dezenas de milhares de anos antes de Beirute se tornar um ponto de encontro entre o Ocidente e o Oriente, o litoral levantino e a Península Arábica ao sul eram corredores por meio dos quais os ancestrais se deslocavam da África para a Ásia, Europa, Austrália e, por fim, para as Américas. A região também se distinguiu por ser um local onde os Neandertais (Homo sapiens neanderthalensis) e nossos ancestrais imediatos coexistiram e cruzaram.

De cima para baixo: arquivo de Dorothy A. E. Garrod;
Henri Fleisch/Levon Nordiguian; Hadi Choueiry
Hoje, quem olha de Antelias para o oeste, nota que a montanha de calcário que abriga o Ksar Aqil foi tão escavada que está quase plana.

A divisão evolutiva entre os neandertais e os ancestrais dos homens modernos ocorreu em algum momento entre 440.000 e 270.000 anos atrás. Os neandertais, os "homens das cavernas" da literatura popular, viveram na Europa, ao sul do Levante, ao leste até o Curdistão e ao sul da Sibéria. De acordo com uma pesquisa conduzida por Svante Pääbo, do Instituto de Antropologia Evolucionista Max Planck em Leipzig, uma pequena parte de DNA de neandertal, entre um e quatro por cento, existe em todas as pessoas hoje em dia, com exceção dos africanos. É provável que nossa herança neandertal tenha resultado do cruzamento que ocorreu no Oriente Próximo entre 80.000 e 45.000 anos atrás.

Segundo propõe a teoria “Out of Africa”, a migração dos homens modernos, do ponto de vista anatômico, provavelmente ocorreu em ondas. Uma migração para o Oriente Próximo que ocorreu há mais de 130.000 anos e o exame de um mapa moderno do Chifre da África e das partes adjacentes da Arábia mostra que há duas rotas óbvias que essa atividade migratória pode ter adotado. Uma envolve cruzar o nordeste do Egito até a Península do Sinai e a outra seria cruzar o Bab el-Mandab direto até o Iêmen de hoje em dia, talvez por meio de embarcações. É provável que ambas as rotas tenham sido utilizadas em diferentes ocasiões, já que eram navegáveis, não apresentavam nenhum perigo significante e eram frequentadas por animais que nossos ancestrais costumavam caçar. Dada sua posição geográfica no Oriente Próximo, servindo como ponte entre a Europa e a Ásia, essa região formou o tronco a partir do qual nossa árvore genealógica expandiu suas raízes africanas, tanto geográfica quanto geneticamente.

Visão geral da área de escavação e dos níveis superiores.
Escavador exibindo um chifre de veado bem preservado.
Exemplos de ossos do período aurinhacense levantino e de pontas de chifre.
O crânio de Egbert, uma criança de sete anos, encontrado durante as escavações.
Ferramentas com lâminas do período Paleolítico Superior Inicial (psi) incluem peças chanfradas e buris, ou cinzéis.
A equipe de escavação atinge aproximadamente 19 metros (62 pés) de profundidade

John Shea, da Universidade de Stony Brook, descreveu a interação entre neandertais e homens modernos no Oriente Próximo como um "cabo-de-guerra geográfico", com deslocamentos periódicos de ambas as populações entrando e saindo da região. Quando os homens modernos se instalaram ali há mais de 130.000 anos, os neandertais já residiam no local, e parece que estes restringiram a extensão da colonização dos recém-chegados por algum tempo. Quando outra onda de homens modernos começou a migrar da África, cerca de 50.000 anos atrás, talvez em razão do crescimento populacional frente à disponibilidade de recursos e território,nossos ancestrais se tornaram os únicos habitantes de lugares como o Ksar Aqil.

Se essa competição tivesse baseado-se apenas em força física, os neandertais teriam vencido sem qualquer esforço. Os homens modernos, entretanto, haviam desenvolvido habilidades cognitivas, físicas e culturais vantajosas, que acabaram levando à marginalização geográfica dos neandertais.

Os neandertais se diferenciavam dos homens modernos de diversas formas, dentre as quais a mais perceptível talvez seja a anatomia craniana, que apresentava uma testa inclinada, uma grande projeção na parte de trás do crânio, chamada de protuberância occipital, ossos sob as sobrancelhas pronunciados e ausência de queixo. Eram fisicamente robustos e mais corpulentos que nossos ancestrais e sua estatura relativamente baixa era mais eficiente em climas frios como os europeus.

O exame de fósseis intra-auriculares na Espanha sugere que os neandertais podiam ouvir uma gama de sons similar àquela que as pessoas podem escutar hoje em dia. A anatomia de sua garganta, em especial a presença do osso hioide, lhes permitiu articular outros sons que não meros grunhidos. Como os homens modernos, eles possuíam um gene essencial para o desenvolvimento da linguagem e alguns paleoantropólogos acreditam que eles eram capazes de utilizar padrões complexos de fala. Entretanto, um modelo de trato vocal de neandertal, auxiliado por um computador a criar prováveis variações sonoras, levou Robert McCarthy, da Universidade Atlântica da Flórida, a concluir que eles careciam de linguagem complexa. De qualquer modo, as vozes dos neandertais se silenciaram há pelo menos 24.000 anos.

Os neandertais pareciam estar aptos a realizar atividades como corridas de longa distância. O custo energético da locomoção era aparentemente 32 por cento maior nos neandertais, resultando em uma necessidade diária de 100 a 350 calorias a mais do que os homens modernos que viviam em ambientes similares. Nossos ancestrais tiveram, dessa forma, uma vantagem competitiva sobre os neandertais, simplesmente por serem mais eficientes em termos de consumo.

Evidências da Península Ibérica indicam que os neandertais usavam pigmentos decorativos ocres e, na caverna Shanidar, no Curdistão, a descoberta de pólen vegetal no solo, em torno de vestígios de esqueletos, indicam que flores eram colocadas sobre os corpos dos mortos. Ornamentos corporais e práticas de rituais de enterro, apesar de simples, representam uma forma de comportamento idêntica aos homens modernos.

Museu Britânico
O crânio de Egbert foi reconstruído por J. F. Ewing em 1955, como mostra este molde de gesso da Universidade da Pensilvânia. Estima-se que o crânio original tenha cerca de 40.000 anos de idade.

Ninguém sabe ao certo o que aconteceu com os neandertais. Os povos modernos que migraram do sudoeste asiático para a Europa podem tê-los deslocado. Sem dúvida, o contato entre eles levou a uma série de interações e algumas delas claramente resultaram no cruzamento entre as espécies, como aquelas descritas no livro de William Golding, The Inheritors, envolvendo conflitos físicos e competição por recursos. O desaparecimento dos neandertais também pode estar ligado a mudanças climáticas drásticas entre 50.000 e 30.000 anos atrás, o que prejudicou ainda mais suas populações já divididas e isoladas.

Ksar Aqil pode ser mais bem visualizado ao imaginar um bolo de 23 metros de camadas superpostas, cada uma delas correspondente a um período de 45.000 anos. As últimas camadas equivaleriam ao Paleolítico Médio e, ainda que sua idade nunca tenha sido determinada, teriam aproximadamente 60.000 anos. Nessa época, os neandertais ainda vagavam pelo Oriente Próximo, mas eles não estavam sozinhos. Nossos ancestrais estavam ressurgindo na região, e é possível que ambos os grupos tenham usado o abrigo rochoso em diferentes ocasiões. Quem foi o responsável pelos artefatos do período paleolítico encontrados em Ksar Aqil continua sendo um mistério, já que tanto os neandertais quanto os homens modernos usavam os mesmos métodos para fabricar ferramentas de pedra.

As camadas do Paleolítico médio são seguidas por uma longa sucessão de ocupações do Paleolítico Superior, sem dúvida a mais longa do Oriente Próximo. Durante as escavações de 1937 - 1938, o Padre Doherty identificou 18 níveis de ocupação. Mais tarde, escavações do sítio feitas pelo eminente pré-historiador francês Jacques Tixier, baseadas em refinadas divisões estratigráficas, demonstraram que na verdade há muito mais camadas do que se pensava.

Em 23 de agosto de 1938, os escavadores do Boston College descobriram algo extremamente raro: vestígios de esqueletos anatomicamente modernos sob uma pilha de pedras desgastadas pela água, a uma profundidade de 11,46 metros (cerca de 38 pés). Uma carta de setembro de 1938, escrita pelo Padre Doherty para o presidente do Boston College, dá uma indicação do grau de entusiasmo: “Digo-lhe confidencialmente, Padre, que nós acreditamos ter encontrado dois esqueletos, pois além do crânio e do esqueleto já mencionados, descobrimos a mandíbula inferior de outro jovem aurignaciano.” Doherty tinha todo o direito de se entusiasmar. Mesmo hoje, poucos fósseis humanos do período Paleolítico Superior Inicial foram encontrados no Oriente Próximo, totalizando apenas um pequeno número de espécimes.

Os dois indivíduos foram encontrados deitados um ao lado do outro. Um dos esqueletos estava mal preservado e envolto por sedimentos compactados, enquanto o outro estava deitado parcialmente fora dessa área consolidada, o que facilitou sua recuperação. Chamado de “Egbert” pelos escavadores, os vestígios mais bem preservados foram identificados por Christopher Stringer, do Museu Britânico de História Natural como pertencente a uma criança que morreu aproximadamente aos sete anos de idade . Recentemente, Katerina Douka, do Laboratório de Pesquisa Arqueológica da Universidade de Oxford diagnosticou que pérolas de conchas marinhas encontradas na mesma camada que a de Egbert tinham 40.000 anos.

Doherty não acreditava que as crianças haviam sido deliberadamente enterradas e escreveu: “parece que o pobre jovem, ou os jovens, foram jogados em restos de comida e não lhes deram mais atenção do que aos restos de javalis, ursos e cervos”. Entretanto, a colocação dos restos mortais sob uma pilha de pedras parece indicar um enterro simples mas deliberado. O fato de os corpos terem sido mantidos dentro do perímetro da habitação, um local certamente importante para o povo de Egbert, sugere também o desejo de manter por perto pessoas queridas.

Egbert pertenceu a um grupo caçador-coletor conhecido pelos arqueólogos como ahmariano, o qual povoou a região entre 41.000 e 27.000 anos atrás. O nome ahmariano refere-se tanto ao sítio arqueológico Erq el-Ahmar, perto de Belém, onde esta cultura pré-histórica foi reconhecida pela primeira vez, quanto ao fato de que esse povo utilizava um corante vermelho a base de ocre (ahmar significa “vermelho” em árabe) para fins decorativos. Não se sabe ao certo que tipo de organização social os ahmarianos praticavam ou como era a interação cotidiana entre eles.

Todavia, estudar o comportamento dos caçadores-coletores modernos é uma forma de entender como seria o comportamento dos povos pré-históricos. A analogia etnográfica, apesar de especulativa, oferece uma janela para os modos de vida das culturas antigas desaparecidas há muito tempo . Suspeitamos que os ahmarianos viviam em grupos familiares, como fazem os caçadores-coletores modernos. Sociedades de bandos são igualitárias, seminômades ou altamente migratórias, com pouca estrutura de liderança, esta baseada em clã e idade. Entre os grupos tribais, como os índios Lakota da América do Norte ou os aborígenes Nyantunyatjara da Austrália, os homens caçam enquanto as mulheres e as crianças colhem plantas comestíveis, raízes, frutas e nozes, bem como aprisionam pequenos animais. A coleta, baseada no conhecimento intrínseco feminino de localização e sazonalidade, é responsável por 50 por cento ou mais da base de subsistência do bando. Tal comportamento de cooperação social foi vital para a nossa sobrevivência. De acordo com o falecido Glynn Issac, da Universidade de Harvard, ele se estende por milhões de anos.

conhecedor da matéria prima (4)
Usando martelos feitos de materiais orgânicos, como chifre de veado, os ahmarianos produziam facilmente diversas lâminas finas ao batê-los contra um único pedaço de sílex. Essas lâminas eram transformadas em ferramentas de raspagem, facas, e pontas de projéteis para caçar.

O que se sabe com certeza é que os ahmarianos eram adeptos do trabalho com pedras. Eles deixaram milhares de suas ferramentas de lâminas no Ksar Aqil. As lâminas são objetos com forma de faca, extraídos de pedaços de sílex chamados de córtex, escolhidas especialmente para fornecer uma forma estreita e alongada. Apesar de serem vistas com maior frequência em culturas mais recentes da Idade da Pedra, como as do Paleolítico Superior, elas já eram produzidas há 250.000 anos, na bacia do sítio arqueológico el-Kowm, no nordeste de Palmira, na Síria. Usando martelos feitos de materiais orgânicos como chifre de veado, os ahmarianos produziam facilmente diversas lâminas a partir de um único pedaço de sílex. Tais lâminas eram transformadas em ferramentas de raspagem, facas, e pontas de projéteis para caçar.

Os caçadores ahmarianos do Ksar Aqil faziam dois tipos diferentes de pontas de projéteis, ambas produzidas rapidamente e com desenho simples. As lâminas eram lascadas, por exemplo com uma extremidade de chifre, para formar sua ponta. Já eram finas em razão da forma como eram extraídas do bloco de pedra e se encaixavam perfeitamente em um eixo. O estilo das pontas de projéteis feitas em diferentes partes do Levante sugere bandos regionais de ahmarianos. Nas regiões da costa norte, eles faziam um tipo de projétil chamado de ponta de face plana, que não é encontrado mais ao sul, nas regiões desérticas do Negev e do Sinai.

Não sabemos precisar como as pontas eram usadas, mas seu tamanho, forma e peso sugerem que eram utilizadas em lanças ou talvez até em flechas. O uso de réplicas experimentais das pontas ahmarianas do Ksar Aqil, chamadas de pontas el-Wad em referência a Mugharet el-Wad, na região do Monte Carmelo, indica que eram extremamente eficazes quando lançadas na forma de projéteis.

A tecnologia para fixar as ferramentas de pedra a seus cabos já era conhecida pelos neandertais há 110.000 anos. Eles usavam adesivos termoativados como betume ou resinas de plantas para fixar as pontas dos projéteis em eixos de madeira. A diferença entre o estilo de caça dos neandertais e o dos ahmarianos é que os primeiros usavam uma lança de menor alcance. A desvantagem dessa arma é óbvia. Ao caçar animais maiores, a probabilidade de se machucar é grande. Como observou Erik Trinkaus da Universidade de Washington, os esqueletos neandertais frequentemente exibiam traumas que se assemelhavam aos que hoje são encontrados em peões de rodeio. Em particular, há uma grande quantidade de lesões de cabeça e pescoço, sugerindo que eles ficavam muito próximos dos grandes animais que eles caçavam.

Os povos ahmarianos e do Paleolítico Superior, por outro lado, provavelmente usavam equipamentos de caça que lhes permitia atacar a presa de uma distância considerável. Um atirador de lanças, ou atlatl, atua como uma extensão do braço, criando uma alavanca e permite que um dardo (um projétil leve), seja atirado com maior velocidade e mais longe.

O povo de Egbert era composto por caçadores muito bem sucedidos. Muitos ossos de animais foram encontrados no Ksar Aqil e incluíam desde animais de médio porte, como gamos, corças, cabras e gazelas. A caça era feita provavelmente por meio de incursões solitárias ou em pequenos grupos para espreitar ou emboscar a presa. A análise de resquícios da fauna local revela um número menor de animais jovens, indicando que os adultos eram caçados com mais frequência. Os animais adultos geram mais carne e, portanto, são alvos mais valiosos para os caçadores.

Não se sabe dizer o que causou a morte de Egbert e da outra criança de Ksar Aqil, mas é fácil imaginar algum tipo de acidente, ainda mais naqueles tempos. Aos sete anos, Egbert era certamente uma criança normal, mas a expectativa de vida era curta durante o Paleolítico Superior, período em que chegar aos trinta anos era sinônimo de uma vida longa. Entretanto, pesquisas recentes sugerem que houve um aumento dramático na longevidade dos humanos modernos durante o período em que Egbert viveu. O aumento do número de membros mais velhos em uma população gera claros benefícios socioculturais, além de ser vantajoso para a sobrevivência.

A maior longevidade permitiu que os humanos modernos pudessem transmitir o conhecimento e a experiência adquiridos diretamente de uma geração para a outra. O maior número de adultos mais velhos também fortaleceu os laços de parentesco, já que os mais velhos viviam para dar coesão social e orientação, de forma similar aos avós de hoje em dia. Isso, por sua vez, promoveu o crescimento populacional, já que mais indivíduos sobreviviam à idade da procriação e podiam auxiliar no sucesso reprodutivo de seus descendentes.

Ksar Aqil, com sua abertura voltada para o sul, está situado em um vale abrigado com acesso a recursos marítimos, litorâneos e terrestres. A faixa costeira viabilizava uma rota para a locomoção, para o comércio à base de trocas e para a interação social com outros grupos ahmarianos, como se pode comprovar por meio de materiais arqueológicos similares encontrados em sítios que se estendem do Líbano até o sul da Turquia. De fato, o Líbano e sua vizinhança serviram como conduíte para a atividade comercial, assim como para a transmissão de ideias, da ciência, da arte e da culinária ao longo da história registrada. Sabemos que, na história humana, importantes contribuições similares remontam a dezenas de milhares de anos. Certamente outras descobertas serão feitas em virtude das novas escavações na região de Beirute patrocinadas pela Diretoria Geral de Antiguidades do Líbano.

A localização de Ksar Aqil o tornou altamente favorável à ocupação, um fato atestado por seu uso intenso e quase contínuo por alguns dos cidadãos mais antigos do Líbano, por cerca de 45.000 anos. Tamanha abrangência certamente minimiza a longevidade de outras civilizações antigas que ocuparam a mesma região, como os fenícios e os romanos. Ruínas fenícias existem em locais como Biblos, enquanto o sítio de Baalbek tem algumas das ruínas mais imponentes fora de Roma. Esses sítios arqueológicos são icônicos e facilmente reconhecidos mundialmente pelo público interessado, mas o Ksar Aqil teve muito menos visibilidade.

Desde a década de 30, a pedra calcária do penhasco foi amplamente extraída. O Líbano passou por um período de revolta civil e, no processo de reconstrução, as bases das montanhas ao redor de Ksar Aqil têm sido altamente exploradas. Apesar do aumento das construções, o sítio continua sendo testemunha tanto da passagem do tempo quanto das rotas que os homens modernos usaram para colonizar nosso mundo.


Graham Chandler

Christopher Bergman (christopher.bergman@urs.com) formou-se na Universidade Americana de Beirute em 1979 e completou sua tese de doutorado em 1985 no Instituto de Arqueologia em Londres. Ele passou 36 anos analisando a sequência arqueológica de Ksar Aqil e acredita que agora compreende o sítio, em sua maior parte.

Ingrid Azoury descreveu os primeiros níveis do Paleolítico Superior do Ksar Aqil. Ela conduziu investigações na Síria e no Líbano, especialmente no abrigo rochoso de Abu Halka, perto de Tripoli.

Helga Seeden é professora de arqueologia na Universidade Americana de Beirute. Seus interesses incluem etno-arqueologia, que examina os modos de vida de culturas tradicionais contemporâneas como meio para interpretar eventos do passado.

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--Os Editores


 

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