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A maior parte das ruínas de Al Zubarah está coberta por areia. No seu auge, no final do século XVIII, a cidade abrigava milhares de pessoas e era cercada por uma muralha de proteção com 22 torres de vigia. |
a costa noroeste do Catar, o mar de águas calmas e de cor de cobalto da baía vai ao encontro da areia e pequenos morros pedregosos. O arqueólogo Alan Walmsley explica que esses morros de areia podem ter dado nome a Al Zubarah (“Monte de Areia”), mas não são responsáveis por sua reputação histórica.
“É muito claro”, diz ele. “Além de ser o ponto de pesca de pérolas mais bem preservado do Golfo, Al Zubarah é um excelente exemplo de planejamento urbano na Península Arábica”. O local, acrescenta ele, é significativo o bastante para “ajudar a expandir nossa visão de como os pontos comerciais costeiros da região funcionavam”.
Essa é uma afirmação impressionante para uma cidade que foi da areia à riqueza e voltou a ser tomada por areia em pouco mais de um século, principalmente por se tratar de uma região onde os arqueólogos costumam trabalhar em períodos de milênios. Aproveitando as áreas de pesca de pérolas encontradas no centro-sul do Golfo, Al Zubarah (ahl zu-bar-ah) se tornou um rico centro comercial entre meados e final do século XVIII. Sua afluente classe mercantil construiu uma imponente cidade murada que abrigou milhares de pessoas. Apesar de ter sido atacada e destruída, em grande parte, no início do século XIX, sua história demonstra a vitalidade das economias costeiras do Golfo pré-industrial que prosperavam com o “ouro branco” – as pérolas.
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Mais de 60.000 fragmentos de cerâmica foram recuperados em Al Zubarah — peças do quebra-cabeça que conta a história do apogeu da região do Golfo devido ao “ouro branco”, como as pérolas eram, às vezes, chamadas. |
A pesca de pérolas é uma indústria muito antiga. Estima-se que as primeiras pérolas descobertas têm até 7.500 anos. Elas foram encontradas nos sítios neolíticos de Al-Sabiyah, no Kuwait, e Umm al-Quwain 2, nos Emirados Árabes Unidos. Essas e outras escavações indicam que, naquela época, as pérolas já tinham status elevado como joias e ocupavam posições de destaque em câmaras funerárias. “A pesca de pérolas dominou o pensamento e o estilo de vida de quase todos os habitantes da costa do Golfo por séculos”, escreveu Robert A. Carter em seu livro de 2012 intitulado Sea of Pearls.
A importância exata das pérolas para Al Zubarah e a importância de Al Zubarah no seu período histórico são os temas do Projeto Qatar Islamic Archaeology and Heritage (QIAH), com duração de 10 anos. Ele foi fundado em 2009 e é liderado pelo Departamento de Antiguidades da Qatar Museums Authority (QMA) em associação com a Universidade de Copenhague. Escavações limitadas ocorreram na década de 1980 e no início da década de 2000, mas, até recentemente, as dimensões e o caráter exatos da cidade ainda eram um mistério. No entanto, o evento considerado crucial para seu desaparecimento foi bem registrado: Em 1811, Al Zubarah foi bombardeada por navios de Omã, devastada pelo fogo e reduzida a ruínas. Tradicionalmente, os historiadores acreditavam que seus habitantes haviam fugido por esse motivo, abandonando totalmente a cidade. Agora, o projeto da QMA está encontrando evidências que contestam essa versão dos eventos e sugere um processo mais complexo e sutil de ocupação, abandono parcial e reocupação.
mbora as fontes sejam escassas, a história de Al Zubarah parece começar na década de 1760 com a chegada de famílias pertencentes ao ‘Utub, uma coligação de tribos que surgiu na Arábia central durante o final do século XVII. Elas incluíam o clã Al Khalifah, que, atualmente, é a família governante de Bahrein, país vizinho. O ‘Utub fundou uma sede no Kuwait e, em 1765, tinha uma frota de pesca de pérolas composta por cerca de 800 barcos. Determinado a aumentar sua influência, o ‘Utub colonizou Al Zubarah e fundou um centro comercial no local. Comerciantes vieram de outros pontos do Golfo, favorecendo Al Zubarah em uma época em que outros centros comerciais, como Basra, sofriam com surtos de peste e a ameaça de um ataque persa.
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O impressionante forte foi construído em 1938, quase um século depois do fim da proeminência da cidade. Atualmente, ele está sendo restaurado. |
Governada pelo ‘Utub e tendo sua própria frota de pesca de pérolas, Al Zubarah prosperou rapidamente. Tão rapidamente que uma cidade ambiciosa foi construída em uma década ou menos. Suas relações comerciais não se limitavam ao Golfo, chegando ao Oceano Índico e além. Contudo, a ascensão meteórica foi breve. Outros pontos de pesca de pérolas rivais surgiram ao longo da costa do Golfo, incluindo os precursores de Dubai e Abu Dhabi. A intensidade da rivalidade econômica entre as cidades costeiras foi agravada pela fragilidade das alianças tribais e familiares locais, que eram prejudicadas por conflitos frequentes.
O final da década de 1770 também foi um período de maior instabilidade política. Cerca de 40 quilômetros ao norte pelo mar, os persas de Bushehr haviam escolhido um governador para as ilhas do Bahrein. Para os persas, Al Zubarah era uma ameaça e essa hostilidade levou à batalha de 1783. O ’Utub prevaleceu e tomou conta do Bahrein. Os residentes de Al Zubarah que se mudaram para o Bahrein incluíam vários membros do clã Al Khalifah.
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alexis pantos / QIAH / QMA |
Prova de que Al Zubarah fazia parte de um sistema maior de comércio costeiro e agricultura, as ruínas desta antiga mesquita estão localizadas em Freiha, ao norte de Al Zubarah. |
Esse movimento de pessoas, bem como a mudança do foco econômico para o Bahrein que o acompanhou, foi motivado por uma segunda ameaça – desta vez, continental. Unidos sob o teólogo muçulmano Mohammed ibn Abd al-Wahhab, outros grupos tribais viajaram da Arábia central para ameaçar cidades costeiras, incluindo Al Zubarah. Por ser uma ilha, Bahrein oferecia um pouco de segurança.
Enquanto isso, potências internacionais começaram a se interessar pela região. Os britânicos desejavam conter a tribo Qawasim, baseada em Ras Al Khaimah, ao longo da costa do Golfo a nordeste de Al Zubarah, que acusavam estar por trás dos ataques piratas aos navios britânicos que atravessavam o Golfo para ir e voltar da Índia. Para reprimir a tribo, os britânicos firmaram um tratado com os omanenses, que também estavam preocupados com seus próprios navios.
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alexis pantos / QIAH / QMA |
Sem cidades novas para encobri-la, Al Zubarah é “um local de impressionante integridade cultural”, afirma Faisal Al-Naimi, diretor de arqueologia da Qatar Museum Authority. |
Em 1809, as tribos inspiradas em Wahhab se uniram à tribo Qawasim para ocupar Al Zubarah. Assim, a aliança britânico-omanense teve uma chance de matar dois coelhos com uma só cajadada. Os britânicos já haviam atacado outros portos ocupados pela Qawasim e os omanenses decidiram atacar Al Zubarah. Um dia, em 1811, eles navegaram até a cidade e a bombardearam com canhões. O pânico e o incêndio que se seguiram deixaram a cidade praticamente em ruínas.
Sua ascensão e queda foram tão rápidas que ainda não se encontrou nenhuma descrição de Al Zubarah durante o seu auge. Em 1824, mais de uma década após o ataque, o Capitão George Barnes Brucks da Companhia das Índias Orientais descreveu-a como “uma grande cidade, agora em ruínas. Ela está situada em uma baía e, antes de ser destruída, foi um local de comércio considerável”. Essa história evocativa e esquiva serve de pano de fundo para o projeto atual , que está tentando decifrar o caráter da cidade no auge de sua prosperidade no final do século XVIII. Nos últimos quatro anos, uma equipe internacional formada por mais de 70 especialistas trabalhou em Al Zubarah durante o outono e o inverno locais. A equipe passou vários meses pesquisando, fazendo levantamentos, escavando e catalogando aquele que agora é reconhecido como um dos sítios históricos mais importantes do Golfo. A equipe deseja responder perguntas sobre o layout da cidade, quais atividades eram realizadas e onde e como os habitantes de Al Zubarah viveram e trabalharam para conseguir a riqueza que construiu tantas coisas tão rapidamente.
ensando nessas perguntas, caminhei pelas ruínas da cidade. Ela cobre 61 hectares – uma área equivalente a, aproximadamente, uma dúzia de campos de futebol. No lado voltado para a terra, ela é delimitada pelas ruínas de uma muralha de proteção de 2,5 quilômetros, que tinha cinco metros de altura e continha 22 torres de vigia distribuídas em intervalos. Levantamentos geofísicos, rastreamento por radar e escavações tradicionais revelaram um sistema viário regular e semelhante a uma grade no interior das muralhas. Havia estruturas para complexos residenciais – um claramente palaciano –, além de oficinas e outros espaços.
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O diretor do projeto, Ingolf Thuesen, da Universidade de Copenhague, mostra o mercado e a área e das oficinas de Al Zubarah a visitantes. Nos últimos quatro anos, uma equipe internacional formada por mais de 70 especialistas trabalhou no sítio durante o outono e o inverno locais, pesquisando, fazendo levantamentos, escavando e catalogando. |
As casas são construídas principalmente ao redor de pátios, ressalta o supervisor arqueológico Tom Collie. Enquanto exploro, percebo que algumas são nitidamente mais ambiciosas que outras em termos de tamanho e projeto. “Os materiais de construção variam, mas constatamos que as pedras de melhor qualidade foram usadas nas estruturas mais elaboradas e importantes”, explica Collie. Ele me mostra como a técnica básica de construção inclui pedras talhadas provenientes da praia, que foram vedadas e protegidas por reboco à base de cal. No reboco da parede de uma casa com pátio, vejo uma gravura simples, mas bem preservada, de um dhow – um emblema do papel crucial desempenhado pelo comércio marítimo na história da cidade.
As equipes estão concluindo que, apesar de sua história breve, Al Zubarah tem camadas, ou seja, diferentes níveis de construção que destacam situações drasticamente inconstantes, como uma versão do Golfo da corrida do ouro do século XIX nos Estados Unidos. Trata-se de um local de mudanças rápidas e dinheiro fácil. Em sua maior extensão, a cidade foi criada em uma fase única durante as décadas de 1760 e 1780. Agora ficou evidente, porém, que essa planta substituiu um pequeno povoado anterior formado por tendas e cabanas, provavelmente habitado por pescadores e suas famílias. De particular interesse é uma área escavada na extremidade ocidental da cidade, diretamente acima da praia. Aqui, numerosos buracos de postes e estacas, fornos e fogueiras indicam uma ocupação temporária na forma de tendas e/ou cabanas de palmeiras durante um período que coincide com a fase principal de construção da cidade. Isso sugere a presença de migrantes econômicos que teriam vindo para auxiliar os pescadores locais de pérolas durante a colheita anual do “ouro branco”, ou estação de pesca de pérolas, que vai de maio a setembro.
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Enquanto isso, a cidade oferece provas de que a pesca de pérolas não era sua única fonte de prosperidade. Armazéns e mercados foram encontrados na parte central da cidade, voltada para o mar. “Eles indicam a produção e o comércio de diferentes mercadorias, incluindo ferraria e outros empreendimentos artesanais”, conta o supervisor arqueológico Mike House. Ele me leva até uma área de recintos ao ar livre, explicando-me que provavelmente foram utilizados para o gado. Em vez de serem apenas trabalhadores de uma “cidade de pesca de pérolas”, os habitantes de Al Zubarah “estavam sempre à procura de maneiras diferentes de ganhar dinheiro”, sugere House.
Além de mostrar que a pesca de pérolas foi uma dentre as várias fontes de prosperidade da cidade, as escavações estão contestando outro capítulo totêmico da história da cidade: o infame ataque de 1811. Longe de ser o suposto apocalipse de Al Zubarah, a arqueologia está mostrando que esse evento não foi cataclísmico. Para começar, a cidade já havia passado do seu auge. “Depois de analisar as diferentes camadas de construção, achamos que Al Zubarah já estava em declínio quando os omanenses dispararam seus canhões”, explica Walmsley, que é diretor de arqueologia do QIAH. “Alguns edifícios importantes já haviam sido despojados e abandonados nos anos que antecederam o ataque de Omã”. Essa nova evidência apoia os dados históricos que sugerem que a população já havia começado a abandonar a cidade muito antes da chegada da marinha omanense.
Da mesma forma, enquanto o bombardeio de 1811 provocou um êxodo considerável, esta foi apenas uma resposta inicial: Algumas pessoas retornaram em seguida e podem ter vivido em estruturas temporárias, indicando a recolonização na década de 1820. O trabalho feito na época incluiu a construção de uma muralha interna, feita sobre edifícios anteriores que haviam desabado e marcando a diminuição da cidade para aproximadamente um quinto do tamanho original. Além disso, o bairro comercial foi diminuído e reconstruído, alguns edifícios danificados foram demolidos e outros foram reconstruídos com materiais recuperados (muitas vezes, de qualidade inferior).
As tensões tribais continuaram em toda a região. Em 1878, Al Zubarah foi atacada novamente – desta vez, pelo Sheik Jassim bin Mohammed Al Thani, um dos fundadores do estado moderno do Catar, que ainda é governando por sua família. Assim, Al Zubarah permaneceu ocupada em escala reduzida até o fim do século XIX, quando foi abandonada novamente. Depois disso, foi usada apenas de forma esporádica.
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A especialista em conservação Nadia Tsatsoulie encaixa cacos para reconstruir um pote quebrado. Direita: Marianne Schwartz usa um microscópio para remover a corrosão que pode esconder as inscrições de uma moeda. |
Além das ruínas de paredes e alguns telhados, a maioria dos achados feitos em Al Zubarah, até o momento, são peças de cerâmica. Cerca de 60.000 fragmentos, chamados de cacos, foram examinados desde 2009. Muitos foram recuperados de pilhas ou montes de lixo encontrados em todo o sítio, frequentemente no lado da muralha do perímetro voltado para a terra. “Preciso trabalhar com pilhas de cacos”, explica a pesquisadora ceramista Agnieszka Bystron, “classificando-os por tipo e data. Detalhes surpreendentemente pequenos, como mudanças sutis na forma de um desenho floral, podem revelar a data de uma peça”. Bystron me apresenta uma grande variedade de peças de cerâmica, incluindo utensílios Julfar de Ras Al-Khaimah, potes de Khunj (Irã), jarros altos e finos para transportar líquidos, cachimbos decorados, recipientes especializados para água produzidos por artesãos da aldeia de Aali (Bahrein) e um misterioso vaso preto de origem desconhecida (possivelmente da Índia ou, talvez, do Irã). Também há peças de porcelana chinesa dos séculos XVIII e XIX, bem como porcelana europeia que costuma ser de uma data posterior. Uma interessante tigela azul e branca tem um furo fascinante, indicando que objetos particularmente valorizados ou caros não eram descartados se quebrassem, mas consertados e reutilizados.
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Arqueólogos ensinam estudantes em visita a lavar e classificar peças de cerâmica. Cerca de 1.000 estudantes visitam Al Zubarah anualmente para aprender sobre o sítio e sua história, além de ver a arqueologia em andamento. |
Outros achados revelam muito sobre a culinária e os hábitos alimentares dos habitantes; como era de se esperar, os peixes ocupavam um lugar de destaque. Ainda assim, há surpresas: As enormes quantidades de espinhas de peixe incluem as de peixe-serra (atualmente muito escasso nas águas do Golfo), bem como amostras de espécies mais comuns que são muito maiores do que as pescadas hoje em dia. Isso indica que a indústria pesqueira atual está capturando os peixes muito antes de chegarem ao tamanho máximo. As pérolas são produzidas por ostras, naturalmente, que eram consumidas como alimento. Suas conchas eram descartadas em pilhas de lixo que, segundo a equipe, chegam a três metros de profundidade. Foi encontrado um grande número de prensas de tâmaras, indicando a produção de xarope de tâmara. As evidências de grãos de arroz, trigo, cevada e favas, além de frutas como cocos, pêssegos, damascos, nozes, uvas e amoras, indicam redes comerciais diversificadas e poder aquisitivo.
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alexis pantos |
Esta pérola parcialmente formada, descartada junto com a concha da ostra, foi encontrada do lado de fora de um edifício do século XIX. As pérolas se formam quando a ostra libera nácar (um revestimento protetor de carbonato de cálcio) sobre um pequeno objeto estranho. |
Os achados diretamente associados à pesca de pérolas incluem poucas pérolas de verdade. Holly Parton, responsável pelo controle do inventário de achados do sítio, diz que isso é esperado em função do valor e da portabilidade: Elas estariam entre os primeiros objetos levados pelos moradores na hora de se mudar ou até mesmo fugir. Existem, no entanto, vários objetos que teriam sido usados por mergulhadores e comerciantes de pérolas: um baú de comerciante de pérolas do século XVIII, uma faca para pesca de pérolas e pesos de mergulho em forma de lágrima feitos de hematita (uma forma mineral do óxido de ferro). Eles ajudavam os mergulhadores a submergir mais de 50 metros em busca de seu prêmio. No total, mais de 200 objetos foram enviados a Doha para serem expostos no novo Museu Nacional, que deve ser inaugurado em dezembro de 2014.
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À esquerda: Um peso de mergulho, feito de hematita (minério de ferro), ajudava os mergulhadores de pérolas a descer mais de 50 metros. Em cima: Uma madrepérola em um fio de ouro é um achado raro: As joias geralmente abandonavam Al Zubarah com os residentes que estavam de partida. Embaixo: Esta peça de vidro e faiança foi enrolada em um mandril e alisada para fundir suas camadas. Direita: Este anel de prata achatado foi encontrado em uma pilha de lixo dentro da muralha da cidade. |
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Esquerda: Este fragmento de cerâmica pode ter sido parte de uma tigela chinesa e posteriormente reutilizado para incrustar um pingente. Estima-se que é datado do século XIX, assim como esta rolha de vidro para garrafa, direita. Em cima: Conchas de cauri com as partes superiores removidas podem ter sido usadas como joias ou peças de jogos. Estas foram encontradas no mercado e na área comercial de Al Zubarah. |
s achados são tão interessantes quanto aquilo que a topografia urbana de Al Zubarah diz sobre os povoados do Golfo. Walmsley, que se especializou por três décadas em arqueologia na Síria, Jordânia e Palestina, explica que Al Zubarah não apresenta o complicado layout urbano orgânico tão típico das antigas cidades tradicionais do Oriente Médio. “Al Zubarah não corresponde à noção estabelecida de cidades islâmicas que se desenvolveram de forma intrinsecamente caótica ou não planejada”, diz ele. “As coisas eram muito mais organizadas aqui, o que indica que havia uma autoridade central responsável pelo projeto e pela construção da cidade”. Ainda não se sabe quem poderia ter dado tal instrução, mas essa visão e organização provavelmente teriam vindo de uma pessoa sofisticada, apoiada por conselheiros experientes.
Tais descobertas e novas perguntas mostram como se sabe pouco sobre a arqueologia urbana das cidades grandes e pequenas do Golfo. Como as evidências diretas da maioria delas não podem ser vistas, pois estão enterradas debaixo de obras modernas, Al Zubarah oferece uma excelente oportunidade para entender como os habitantes desses povoados viveram, trabalharam e se relacionaram com as outras pessoas ao seu redor.
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agnieszka bystron / QIAH / QMA |
A maior parte do layout da cidade já é conhecida. Portanto, existem oportunidades para aprender mais sobre como as pessoas viveram, trabalharam e se relacionaram umas com as outras. |
ara entender melhor esse último fator, viajei alguns quilômetros para o norte, pela costa, até Freiha. Trata-se de outra cidade “perdida” que, como Al Zubarah, está ajudando os historiadores a entenderem a situação inconstante dos portos comerciais costeiros. As peças de cerâmica encontradas confirmam que Freiha foi anterior a Al Zubarah, mas as escavações indicam um padrão de povoamento em evolução semelhante, do tipo apogeu e fracasso. O fato mais interessante sobre Freiha é sua localização: um povoamento ao redor de uma nascente, em lugar mais alto, afastado do porto principal.
Tocos de tamareiras mortas há muito tempo indicam que estas terras eram agrícolas e provavelmente forneciam produtos frescos sazonais ao porto, que, de outra forma, seriam difíceis de obter. É lógico supor que esses arranjos ocorriam em outros locais, formando a região de apoio da costa. Uma referência do século XIX a 20 fortes “dentro e em torno de Al Zubarah” foi respaldada por levantamentos que indicam antigos sistemas de campo e cercas. Essa rede de pequenos povoados rurais, localizados para o interior e perto de fontes de água doce, teria funcionado como satélites para as cidades costeiras, fornecendo suprimentos vitais a Al Zubarah, em particular.
A melhor compreensão de como a rede de pequenas “cidades-estados” comerciais do sul do Golfo se conectava social e economicamente entre si e com a região do interior é um dos resultados mais importantes do Projeto QIAH até o momento. As indicações de que, apesar de relevante, o bombardeio de 1811 não foi determinante e que Al Zubarah não dependia exclusivamente da pesca de pérolas são igualmente importantes.
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Após a restauração, o forte de Al Zubarah será a sede do centro de visitantes da Qatar Museum Authority. |
Tudo isso aponta para um declínio que foi causado por diversos eventos, não apenas por eventos locais. O comércio de pérolas do Golfo entrou em colapso após o influxo de pérolas cultivadas do Japão a partir da década de 1920. Em 1869, o Canal de Suez reposicionou as rotas de comércio hemisféricas, reduzindo eficazmente o frete no Golfo para tráfego regional em vez de de global. Localmente, a superexploração dos recursos hídricos parece ter apressado a seca e o declínio agrícola. Até o momento, o trabalho de conservação em Al Zubarah está limitado à reconstrução e consolidação de seções da muralha externa, uma das torres e algumas habitações domésticas dentro do complexo maior. Apesar de não terem sido reconstruídas, as muralhas foram estabilizadas; seções históricas de reboco foram recolocadas sempre que possível e um novo reboco foi aplicado quando necessário. Isso tem ajudado a começar a recriar a aparência da cidade em seu auge, há 250 anos. Pela primeira vez em pelo menos um século, é possível andar pelas ruas de areia e se posicionar em uma seção da muralha que costumava proteger os habitantes de Al Zubarah.
“Al Zubarah é um local de impressionante integridade cultural”, explica Faisal Al Naimi, diretor de arqueologia da Qatar Museum Authority. “A cidade está lançando luz sobre a história da região inteira, não apenas do Catar. Temos o privilégio de revelar seu rico patrimônio para o mundo”.
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James Parry (www.jamesvparry.com) é historiador, escritor e conferencista especializado na história e no patrimônio da Península Arábica. Ele trabalhou e morou em vários países do Oriente Médio. Atualmente, reside em Norfolk, Inglaterra. |
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Dan Britton (brittondan@hotmail.com) é fotógrafo freelancer e arqueólogo da Universidade de Copenhague que usa fotografias de estúdio, campo e aéreas para registrar o Projeto Qatar Islamic Archaeology & Heritage em Al Zubarah em nome da Qatar Museum Authority. |