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TOBIAS KOWNATZKI/RAZORFILM |
A atuação da atriz Waad Mohammed no papel-título teve aclamação quase universal. Acima: Ela encontra a bicicleta verde que se torna seu sonho. |
Em um bairro de Riad, a jovem Wadjda de 10 anos faz a caminhada matinal de costume até a escola quando Abdullah – seu vizinho e melhor amigo – chega de bicicleta e apanha seu véu de brincadeira. “Venha pegar!”, ele provoca. “Eu iria se tivesse uma bicicleta!”, responde ela. “Você não sabe que meninas não andam de bicicleta?”, pergunta o menino. Enquanto ele se afasta, nasce o sonho de Wadjda. Mais tarde, a jovem diz a Abdullah que economizará dinheiro para comprar a sua própria bicicleta e desafiá-lo em uma corrida. Sua jornada, desaprovada pela mãe e pela escola, dá início a um rico enredo repleto de camadas que destaca a cultura e os costumes sauditas, bem como o nosso senso de humanidade comum.
Lançado no ano passado e vencedor, até agora, de 16 prêmios internacionais, O Sonho de Wadjda é o primeiro longa-metragem da diretora saudita Haifaa Al Mansour (39 anos), além de ser o primeiro longa-metragem filmado inteiramente na Arábia Saudita com um elenco todo local, o primeiro filme saudita dirigido por uma mulher e o primeiro filme na história do país a ser pré-indicado ao Oscar.
Al Mansour atribui o sucesso de sua produção às mudanças sociais que ocorreram no reino saudita. “Há 10 anos, seria impossível fazer este filme em Riad”, comenta ela. “Existem muitos motivos para se empolgar e ser otimista em relação ao futuro do reino. Espero que o filme reflita isso”.
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Al Mansour orienta Abdulrahman Al-Gohani, que interpreta Abdullah, e Mohammed durante filmagem em Riad. |
O Sonho de Wadjda retrata aos espectadores como é a vida de uma família de classe média na Arábia Saudita. Wadjda é filha única e frequenta uma tradicional escola religiosa para meninas, cuja diretora a submete a constrangimentos por seus atos sutis de rebeldia – tênis All Star de meninos, fitas com músicas pop, pulseiras trançadas com cores de times e, acima de tudo, seu sonho distante de ter uma bicicleta. A mãe de Wadjda é uma mulher amável cujos deslocamentos longos e quentes para o trabalho se tornam piores devido à impaciência de seu motorista. Apesar de ainda amar o marido, sente-se ferida pelo profundo anseio de seu cônjuge por um filho com uma segunda mulher. O amigo de Wadjda, Abdullah, é um garoto doce, leal e encantador. Ele se torna seu aliado quando a ensina – em segredo – a andar de bicicleta no telhado da casa da menina. Os dois estão alheios ao significado de seus gêneros sexuais no mundo onde vivem, que é retratado como um lugar em que triunfos e derrotas acontecem de forma realista, enquanto a tradição e o progresso interagem ponderamente.
“Os acontecimentos relacionados à história são reais, brutos e autênticos. Como saudita, fico chocada, pois não há aquele embelezamento nem brilho que encontramos em muitos filmes”, diz a artista Manal Al Dowayan, que, como Al Mansour, cresceu na Província Oriental da Arábia Saudita.
Al Mansour explica que a bicicleta “é uma metáfora para um sonho não realizado. Espero que todas as pessoas que já se esforçaram para atingir um objetivo impossível consigam se identificar com a jornada de Wadjda”. Para Al Mansour, a bicicleta – que, talvez por coincidência, é verde, a mesma cor da bandeira saudita – representa a liberdade de movimento, tanto física como social. Juvenil e, ao mesmo tempo, tradicional, “a bicicleta também é um brinquedo em alguns aspectos; portanto, não deve ser vista como algo ameaçador nem prejudicial”. A perseverança de Wadjda é heroica e seu sorriso é contagiante. O público simpatiza com as lutas e provações de Wadjda, que, no fim, são resolvidas por um ato surpreendente de amor materno que triunfa ternamente sobre o medo do julgamento alheio.
Além disso, há a corrida de bicicleta, tão doce e simbólica como o resto do filme. Wadjda fala por si mesma (e, talvez, pela sua geração) quando grita para Abdullah: “Pegue-me se for capaz!”.
O Sonho de Wadjda é, nesses aspectos, um filme sério que exibe uma visão sincera e completamente empática sobre casamento, família, educação, trabalho, religião e amor. O sentimento universal que emociona o público não depende de nacionalidade, raça, nem religião. No popular site americano sobre filmes www.rottentomatoes.com, a classificação geral dos usuários é 99% positiva. “É um filme quase milagroso pelo fato de que subverte nossas imagens e expectativas sobre a vida na Arábia Saudita”, escreveu Marc Mohan para o jornal The Oregonian. Duane Dudek, do jornal Journal Sentinel de Milwaukee, Wisconsin, observou que Wadjda “não está se rebelando conscientemente contra as autoridades, mas sim expressando a sua individualidade, como uma Lisa Simpson saudita”. No jornal Detroit News, Tom Long escreveu: “Sim, é um filme sobre a Arábia Saudita. Mas o mais importante é o fato de ser um filme sobre a vida”.
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Em seu primeiro gesto daquilo que se tornará um admirável apoio à determinação de Wadjda para aprender a andar de bicicleta, Abdullah lhe dá um capacete. Ao lado, à esquerda: No Festival Internacional de Cinema de Dubai de 2012, Waad Mohammed recebe o prêmio de melhor atriz de longa-metragem das mãos do HH Sheikh Mansoor bin Mohammed bin Rashid Al Maktoum. Barra lateral, abaixo: No Festival Internacional de Cinema de Dubai de 2012, Waad Mohammed recebe o prêmio de melhor atriz de longa-metragem das mãos do HH Sheikh Mansoor bin Mohammed bin Rashid Al Maktoum. |
No entanto, para as espectadoras sauditas, O Sonho de Wadjda é um filme mais pessoal. Dina Juraifani, de al-Qassim, na Província Oriental, admite: “Aconteceu conosco exatamente como no filme. Ainda acontece hoje, mas depende da forma de pensar de sua família”. Da mesma forma, a estilista Daneh Buahmad, tia orgulhosa de Abdulrahman Al-Gohani, que interpreta Abdullah no filme, confessa que “durante algumas partes do filme, fiquei preocupada com aquilo que ‘o Ocidente’ pensaria sobre nós [sauditas], mas é uma história comovente sobre uma menina e sua mãe. Acho que toda mulher pode se identificar. Um lado verdadeiro da Arábia Saudita é mostrado e muitos problemas são abordados, revelando um aspecto muito humano. Lágrimas rolaram pelo meu rosto. Acho que isso aconteceu com muitas pessoas que assistiram ao filme. Sinto muito orgulho de Haifaa porque ela conseguiu fazer um filme que aconteceu na Arábia Saudita, mas conta uma história com a qual todos, de alguma forma, podem se identificar”.
Al Mansour explica que, na Arábia Saudita, “as pessoas usam jeans e os adolescentes lançam olhares de reprovação aos seus pais, como acontece em qualquer lugar. Existem muitas histórias para contar que as pessoas não conhecem”. Ahd Kamel, diretora de cinema saudita que também interpreta o papel da diretora impiedosa, acrescenta: “Somos humanos. Podemos amar e sentir medo. A Arábia Saudita não é preta nem branca. Trata-se de uma cultura muito complexa, com vários grupos étnicos e tradições culturais diferentes”.
Apesar de O Sonho de Wadjda estar em exibição em cinemas e festivais do mundo inteiro, além da pré-indicação ao Oscar, o filme não pode ser visto pelo público na Arábia Saudita, pois não existem salas de cinema comerciais no país. Isso deixa muitas pessoas confusas, mas Sultan Al-Bazie, diretor da Sociedade de Cultura e Artes da Arábia Saudita, fica feliz pelo fato de o comitê não governamental de indicação de sua organização (que também é presidido por ele) ter escolhido O Sonho de Wadjda como o primeiro candidato oficial da Arábia Saudita ao Oscar. Al-Bazie acredita que O Sonho de Wadjda tem chances na premiação. A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas quer filmes locais e independentes, diz ele, e O Sonho de Wadjda “é um filme excelente, com uma história importante e que tem uma presença palpável. Ganhou muitos prêmios em festivais de cinema do mundo todo. Esse desafio, além da coragem de Haifaa em tratar da situação na Arábia Saudita, um país sem cinemas, é impressionante”. Al Mansour, acrescenta ele, criou oportunidades novas e animadoras para os cineastas sauditas.
Essas oportunidades podem incentivar, um dia, a abertura de salas de cinema comerciais? “Os sauditas sempre foram receptivos ao cinema, à moda e a outras formas de arte vistas via satélite, por viagens ao exterior e outros meios”, comenta Al-Bazie. “Além disso, todos os sauditas têm opiniões sobre filmes”. Dvds estão disponíveis para locação ou compra; os sauditas baixam filmes por satélite e pela Internet; eles vão a cinemas durante viagens ao exterior. Todavia, Al Mansour é ponderado sobre o assunto. “É como proibir as mulheres de dirigir. É uma questão importante e ambos os lados são veementes a respeito dela. Por isso, o assunto permanece sem ser resolvido... Acontecerá na hora certa”. O mais importante, acrescenta ela, é que “existe uma grande plataforma para as mulheres, que podem avançar sem deixar de observar as normas culturais”. Ela não acredita que protestos ou campanhas agressivas sejam formas eficazes de promover mudanças em um país tradicional, tribal e conservador que tem apenas 80 anos de idade.
Foi assim que, como muitos sauditas, Abdullatif Abdulhadi assistiu recentemente ao filme baixado pela Internet na casa de um amigo. “É um filme excelente que aborda muitas das questões sociais que existem na Arábia Saudita, sendo apresentado em um roteiro muito descontraído e simples”.
Embora a história contenha muito subtexto, Al Mansour enfatiza seu desejo simples de que o público aproveite a história e se sinta esperançoso e motivado. “Quero que as pessoas terminem de assistir ao filme e possam sonhar e ser felizes. É preciso trabalhar duro para as mudanças acontecerem”. Trata-se de um tema que não tem fronteiras.
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Leila Al-Habbal (leila@alhabbal.net) cresceu como uma “criança da Aramco”, em Dhahran, Arábia Saudita. Estudou na Phillips Exeter Academy e obteve seu bacharelado em jornalismo na Universidade George Washington. Ela mora em Dhahran e trabalha como escritora e editora freelance especializada em questões sociais da região. |