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Volume 65, Número 1Janeiro/Fevereiro de 2014

In This Issue

PIETRO della Valle, o peregrino da curiosidade – Escrito por CAROLINE STONE
Pietro della Valle viajou pelo Oriente por doze anos (1614 a 1626). As cartas detalhadas que escreveu sobre a jornada, destinadas a informar seus compatriotas sobre terras pouco conhecidas, foram publicadas em três volumes, em 1650, 1658 e 1663.

O italiano Pietro della Valle era colecionador de livros, linguista e ávido correspondente. Além disso, foi um dos viajantes mais importantes, porém menos conhecidos, do Oriente Médio no século XVII. Apesar de sua contribuição extremamente ativa ao conhecimento ocidental sobre o mundo islâmico e de sua romântica história pessoal, ele é relativamente ignorado. Isso acontece, em grande parte, porque nunca houve uma edição padrão facilmente disponível de suas grandes cartas, em italiano ou inglês. Descrevendo suas viagens da Turquia ao Egito, Levante, Pérsia e costa oeste da Índia, seus textos totalizam mais de um milhão de palavras.

A grande importância de della Valle está em suas descrições vívidas e detalhadas, bem como em sua curiosidade incessante. Ele se interessava por tudo. Sempre que possível, comparava aquilo que via com relatos anteriores – tanto de clássicos quanto os de viajantes como do naturalista francês Pierre Belon (1517–1564) – assim como com informações encontradas nos textos turcos, persas e árabes aos quais teve acesso.

Além de registrar o que descobriu, ele demonstrou um ceticismo saudável em relação àquilo que lhe foi dito por outras pessoas. Observou: “Disseram-me isso, mas não tenho maneira de determinar se é verdade ou não” ou “tentei descobrir mais a esse respeito, mas não pude encontrar ninguém com informações que parecessem realmente confiáveis”.

Della Valle ficou fascinado pelas Pirâmides de Gizé quando as viu pela primeira vez em 1615. Muito tempo e esforço foram dedicados por ele à exploração da Grande Pirâmide. Esta gravura é do livro Les Six Voyages de Jean-Baptiste Tavernier, publicado em 1676, seis décadas após a visita de della Valle.
Della Valle ficou fascinado pelas Pirâmides de Gizé quando as viu pela primeira vez em 1615. Muito tempo e esforço foram dedicados por ele à exploração da Grande Pirâmide. Esta gravura é do livro Les Six Voyages de Jean-Baptiste Tavernier, publicado em 1676, seis décadas após a visita de della Valle.

Ele colecionava livros, plantas e todos os tipos de informações, e até chegou a levar um artista consigo para registrar suas viagens. Desejava que seus compatriotas tivessem uma visão clara das terras orientais, por motivos comerciais e diplomáticos. No entanto, seus próprios interesses eram predominantemente intelectuais. Infelizmente, nenhum dos vários esboços e pinturas mencionados por ele sobreviveu.

Della Valle nasceu em 1586 em uma rica família aristocrática de Roma. Quando estava com 20 e poucos anos, participou de uma expedição naval espanhola contra corsários na costa do Norte da África. Depois disso, desiludido no amor, mudou-se para Nápoles, onde – deprimido a ponto de considerar o suicídio – recebeu conselhos de seu amigo e médico Mario Schipano para viajar.

Com isso, decidiu fazer uma peregrinação a Jerusalém. Para dar mais sentido à sua jornada, della Valle planejava enviar cartas detalhadas ao amigo, que poderia, escreveu ele, “extrair um relato claro e bem escrito de toda a minha peregrinação”. Schipano não conseguiu fazer isso, mas della Valle cumpriu sua parte no acordo – e fez ainda muito mais. Ele voltou para casa depois de doze anos de aventuras. il Pellegrino (“o peregrino”), como costumava ser chamado, publicou em vida um volume de suas cartas. Outros dois foram publicados postumamente.

Della Valle ficou muito impressionado com seus guias no deserto. Eles “têm uma imagem mental de cada lugar, das fontes de água, das várias estradas, tanto das longas como das curtas”.

Della Valle embarcou para a Terra Santa em junho de 1614, navegando de Veneza a Constantinopla (atual Istambul). Na capital otomana, fez questão de não apenas visitar os monumentos, mas também acompanhar eventos como as festividades do bayram, que marcam o fim do Ramadã (cujas atrações incluíam balanços e o ‘ajalaat, uma versão inicial da roda-gigante) e os desfiles militares realizados à medida que o Sultão Ahmed I e suas tropas marchavam contra o Xá Abbas da Pérsia i. Com isso, para entender melhor aquilo que veria em suas viagens, ele passou um ano em Constantinopla estudando turco, árabe e persa, assim como hebraico para fins acadêmicos.

“Para meu aborrecimento”, escreveu em fevereiro de 1615, “por mais de dois meses, meu professor de língua turca (...) abandonou-me, porque tem estado ocupado com seus próprios afazeres. Agora, porém, ele voltou a me dar aulas, o que me deixa muito satisfeito. Estou estudando como um louco, e por um bom motivo”.

Della Valle viajou milhares de quilômetros, como é mostrado neste mapa de 1953 extraído do livro de William Blunt intitulado Pietro's Pilgrimage: A Journey to India and Back at the Beginning of the Seventeenth Century. Sua primeira parada foi em Constantinopla (Istambul), onde passou um ano estudando turco, árabe, persa e hebraico. 
Della Valle viajou milhares de quilômetros, como é mostrado neste mapa de 1953 extraído do livro de William Blunt intitulado Pietro's Pilgrimage: A Journey to India and Back at the Beginning of the Seventeenth Century. Sua primeira parada foi em Constantinopla (Istambul), onde passou um ano estudando turco, árabe, persa e hebraico.

Em Constantinopla, della Valle também começou a tentar adquirir textos para Schipano (um competente estudioso de árabe) e para si mesmo, o que resultou na construção da base de uma excelente biblioteca.

Ele navegou para Alexandria, no Egito, em setembro de 1615. Em uma carta enviada de Cairo e datada de 25 de janeiro de 1616, descreveu os pontos turísticos que havia visitado, comentando sobre a beleza da arquitetura mameluca, com destaque para as tumbas de al-‘Arafa, a famosa Cidade dos Mortos. Visitou as Pirâmides, é claro, e fez uma exaustiva exploração das passagens internas da Grande Pirâmide.

Della Valle estava muito interessado em adquirir uma múmia intacta para levar para a Itália. Não era fácil encontrar exemplares, pois, muitas vezes, as joias eram roubadas e as múmias eram moídas em seguida. Acreditava-se que o pó resultante, chamado de mummia, tinha propriedades medicinais. Como era de se esperar, ele queria ver exatamente como as múmias eram escavadas e até chegou a descer no poço de escavação. Seu relato dessa atividade é fascinante, assim como as descrições de suas descobertas.

A gravura de Bagdá do século XVII, às margens do Rio Tigre, feita por Tavernier, pode se assemelhar àquilo que Pietro della Valle viu quando chegou à cidade em 1616. Foi ali que conheceu Ma‘ani, seu “amor babilônico”, com quem se casou.
A gravura de Bagdá do século XVII, às margens do Rio Tigre, feita por Tavernier, pode se assemelhar àquilo que Pietro della Valle viu quando chegou à cidade em 1616. Foi ali que conheceu Ma‘ani, seu “amor babilônico”, com quem se casou.

A atenção dedicada à vida cotidiana, assim como aos grandes pontos turísticos, é típica de della Valle. Ele observou que algumas casas tinham pinturas e inscrições nas paredes, indicando que o proprietário havia participado da Hajj. Com seu interesse tipicamente italiano em roupas, ele não descreveu apenas os trajes das classes altas, mas também os jellabas azuis usados por camponeses de ambos os sexos – uma longa túnica de mangas largas que se parece com o thobe ainda usado por alguns grupos de beduínos que se estabeleceram na região de Belém – bem como as várias maneiras de enrolar um turbante.

Della Valle descreveu a sua peregrinação para Jerusalém, onde passou a Páscoa. Apesar de ser muito devoto, demonstrou certo ceticismo em relação a algumas das celebrações. Depois, viajou para o norte rumo a Damasco, onde teve a sorte de encontrar vários manuscritos samaritanos raros, incluindo um com notas explicativas em árabe. Em Aleppo, escreveu para Schipano para lhe dar a boa notícia e discutir a melhor forma de garantir que a coleção fosse disponibilizada para sua finalidade principal: difundir o conhecimento.

Depois da Síria, della Valle decidiu viajar para a Pérsia, passando por Bagdá, pois desejava conhecer o Xá Abbas, que estava envolvido em discussões diplomáticas com governantes europeus sobre comércio e como conter as ambições imperiais dos otomanos. Com sua energia habitual, explicou que havia mandado construir caixas especiais para transportar seus equipamentos de cozinha facilmente por camelo, protegendo o conteúdo caso fossem derrubadas. Além disso, encomendou recipientes especiais para “dar à água um cheiro e sabor muito agradáveis, bem como para mantê-la fresca”. Tudo deveria ter uma aparência “extremamente elegante”. Finalmente, em 16 de setembro de 1616, ele raspou a cabeça, colocou um turbante, vestiu a si mesmo e à sua comitiva “na maneira síria, para não serem reconhecidos” e partiram.

Della Valle e sua comitiva teriam ficado em um khan como este durante suas viagens de uma cidade à outra.
Della Valle e sua comitiva teriam ficado em um khan como este durante suas viagens de uma cidade à outra.

No Iraque, fez uma longa descrição do estilo de vida dos beduínos, observando que as mulheres não cobriam seus rostos. Ele ficou fascinado com as tatuagens dos beduínos e, aparentemente, fez uma em si mesmo – algo extremamente ousado para um cavalheiro romano naquela época. Na verdade, ele gostava de usar trajes locais, tanto por conveniência como para experimentar modas diferentes. Contudo, ficou muito irritado quando suas finas roupas íntimas italianas foram roubadas, apesar de se sentir aliviado pelo fato de que os ladrões não levaram seus livros e papéis.

Della Valle ficou muito impressionado com os guias no deserto. Eles “têm uma imagem mental de cada lugar, das fontes de água, das várias estradas, tanto das longas como das curtas”, escreveu ele. “À noite, eles observam as estrelas, mas, durante o dia, baseiam-se em pontos de referência, observando se sobem ou descem, a cor, os tipos de plantas que crescem ali e – o que me deixou realmente impressionado – o cheiro. Assim, encontram com facilidade as estradas que estão procurando”. O mais notável é que os guias sempre conduziam a caravana diretamente a poços quando havia necessidade, embora não tivessem parapeitos e fossem completamente invisíveis à distância.

Ele viajou pelo território do poderoso e famoso Emir Fayyad, que, para surpresa e prazer de della Valle, controlava seus domínios de tal forma que as caravanas podiam atravessar o deserto com razoável segurança. Descrevendo o Emir e suas terras, della Valle acrescentou: “(...) este Emir afirma ser capaz de comprovar sua descendência direta desde Noé, algo que acho difícil de acreditar; todavia, se for verdade, seria uma nobreza possivelmente sem igual neste mundo. Certamente, sou da opinião de que, se alguma nação pode se gabar de ter uma nobreza de linhagem verdadeira e antiga ao longo de muitos anos, essa nação são os árabes, apesar da vida dura que levam no deserto. Em primeiro lugar, porque vivem livres, o que é um fator muito importante – e o único motivo pelo qual não desejam se submeter à vida em cidades; em segundo lugar, porque desde o início do mundo, nunca se misturaram com outra nação, mas sempre se casam entre si, não apenas entre semelhantes, mas quase sempre com pessoas do mesmo sangue”.

Isfahan estava passando por uma extensa reconstrução, sob a supervisão do Xá Abbas I, quando della Valle visitou a cidade em 1617. Fazia tempo que ele desejava conhecer a cidade, mas seu maior interesse era encontrar o próprio Xá Abbas.
Isfahan estava passando por uma extensa reconstrução, sob a supervisão do Xá Abbas I quando della Valle visitou a cidade em 1617. Fazia tempo que desejava conhecer a cidade, mas seu maior interesse era encontrar o próprio Xá Abbas.

Como sempre fazia durante suas viagens, della Valle visitou todos os sítios arqueológicos que conseguiu. No caminho entre Aleppo e Bagdá, ele descreveu, por exemplo, as ruínas de “Isrijeh” e “al-Taijbeh” (Isriyah e al-Taybah) no deserto, bem como aquilo que acreditava ser a Torre de Babel. A tendência de comparar lugares com pontos da Itália que seriam conhecidos por Schipano e seus possíveis leitores pode parecer um pouco provinciana, mas, na verdade, “maior do que a Piazza Navona” em Roma ou “ruínas mais altas do que o palácio mais alto de Nápoles” dão uma ideia da magnitude dos monumentos que não existem mais.

Em Ur e Ctesifonte, comentou que recolheu pedaços de telha, tijolo e amostras de betume – para a diversão dos moradores, “que não entendem nosso gosto por tais curiosidades”. Também salientou que Bagdá obviamente não era a antiga Babilônia, como muitos acreditavam, “uma vez que é possível ver claramente a partir (...) da arquitetura, que as inscrições árabes em inúmeros locais, esculpidas ou moldadas em estuque (...) comprovam ser construções modernas e, sem a menor dúvida, muçulmanas (...)”. Acrescentou que esperava que seu árabe logo fosse bom o suficiente para comparar aquilo que lhe diziam com as histórias árabes.

O tratado de della Valle sobre a cosmologia heliocêntrica do astrônomo dinamarquês Tycho Brahe, escrito em italiano e persa, incluía o modelo do sistema solar de Brahe. Della Valle escreveu o estudo em Goa para um estudioso que conhecera em Lar, na Pérsia.
O tratado de della Valle sobre a cosmologia heliocêntrica do astrônomo dinamarquês Tycho Brahe, escrito em italiano e persa, incluía o modelo do sistema solar de Brahe. Della Valle escreveu o estudo em Goa para um estudioso que conhecera em Lar, na Pérsia.

Na chegada de della Valle a Bagdá, ocorreu um desastre: Um de seus servos italianos matou o outro em uma briga estúpida sobre precedência. O explorador descreveu em detalhes as manobras necessárias para impedir que sua comitiva inteira fosse presa. Por outro lado, foi em Bagdá que aconteceu o evento que talvez tenha sido o mais importante de sua vida: Ele anunciou, de forma bastante repentina, que estava casado com seu “amor babilônico”, uma jovem chamada Ma‘ani—“uma palavra árabe que significa ‘importância’ ou ‘inteligência’ (...)”.

Foi uma história romântica. Ele ouvira falar sobre Ma‘ani depois de partir de Aleppo e decidiu que precisava conhecê-la. Um conhecido em comum conseguiu apresentá-los. Os pais dela receberam-no de forma muito hospitaleira, ajudando-o a providenciar alojamentos adequados para ele e sua comitiva. Ma‘ani sonhava com ele antes de vê-lo pela primeira vez. No primeiro encontro, deu-lhe um marmelo, que é uma oferenda do ritual de casamento na Grécia e em toda a região do Levante desde os tempos clássicos. Foi amor à primeira vista para os dois.

“Embora não seja de bom-tom que um marido exagere a beleza de sua esposa”, escreveu della Valle, ele não pôde resistir e descreveu Ma‘ani em detalhes, chegando a explicar que seus olhos eram alongados com kohl. Descreveu-a como sendo de excelente família cristã, nascida em Mardin, na Turquia. Sua mãe era armênia e “o árabe é o seu idioma nativo, mas ela também fala turco, como normalmente faz comigo, já que sei apenas um pouco de árabe (...)”. Em seguida, disse que apreciava sua inteligência e bom humor, bem como seu destemor. Mesmo quando eram atacados por bandidos, ela preferia ficar e assistir, cuidando dos casacos e bagagens dos homens, em vez de fugir.

Durante a noite, o xá vagava por Isfahan visitando cafés e lojas, incluindo a de um negociante de arte italiano.

Della Valle escreveu que Ma‘ani se vestia da maneira síria – embora gostasse muito das ideias da moda italiana – e cobria a cabeça “como fazem as mulheres beduínas (...), um efeito semelhante aos véus de nossas freiras ou das viúvas espanholas (...)”. Admitiu que algumas coisas a seu respeito pareciam um pouco bárbaras, como usar um brinco no nariz. Disse que a convenceu a removê-lo, embora suas irmãs se recusassem a fazer o mesmo.

Della Valle concluiu esta longa missiva, datada de 16 e 23 de dezembro de 1616 (muitas de suas cartas são na forma de um diário, escrito durante vários dias ou semanas), desejando que Schipano começasse a editar suas cartas. Esperava que, em pouco tempo, pudessem se sentar juntos e fazer os últimos retoques, pois pretendia retornar em breve, logo depois de visitar Isfahan.

Depois do Natal, o jovem casal partiu para o Irã. “Comecei a mudar minhas roupas de sírias para persas”, relatou della Valle. Também encontrou um barbeiro local para raspar a barba que havia cultivado durante os 16 meses anteriores. “Queria que ele me desse uma aparência completamente persa, ou seja, com as bochechas e o queixo barbeados, além de longos bigodes”, mencionou. Ma‘ani ficou de “coração partido” quando o viu, acalmando-se apenas quando ele explicou que, ao “viajar para diferentes países, era necessário se adaptar a costumes diferentes”.

Três meses depois, chegaram a Isfahan, a cidade que della Valle tanto queria visitar e que estava sendo reconstruída pelo Xá Abbas com as grandes mesquitas e monumentos que ainda podem ser vistos hoje. Ele descreveu o local e seus habitantes em detalhes; ficou particularmente impressionado com a grande variedade de pessoas e seus costumes, especialmente com a comunidade indiana e o bairro cristão em Nova Julfa. Este havia sido fundado pelo Xá Abbas para os armênios que foram deportados à força de seu país. Esperava, em grande parte, que eles estimulassem a economia por meio da manufatura e do comércio. Della Valle descreveu o terrível sofrimento pelo qual passaram ao longo do caminho, embora as condições fossem geralmente boas quando chegaram à Nova Julfa.

No caminho entre Isfahan e Hormuz pela costa em 1621, della Valle parou em Persépolis, onde copiou e, mais tarde, publicou as primeiras inscrições cuneiformes vistas na Europa. Deduziu corretamente que a escrita era lida da esquerda para a direita, mas não conseguiu decifrá-la.
No caminho entre Isfahan e Hormuz pela costa em 1621, della Valle parou em Persépolis, onde copiou e, mais tarde, publicou as primeiras inscrições cuneiformes vistas na Europa. Deduziu corretamente que a escrita era lida da esquerda para a direita, mas não conseguiu decifrá-la.

Em Isfahan, della Valle conheceu várias pessoas interessantes, incluindo estudiosos de várias nacionalidades. Um deles era Muhammad Qasim ibn Hajji Muhammad Kashani, conhecido como Susuri, que, mais tarde, enviou-lhe uma cópia de seu dicionário enciclopédico intitulado Majma’ al-Furs Susuri, quando foi concluído em 1626. Dedicado ao Xá Abbas, foi uma obra de referência padrão durante grande parte do século XVII. Deve ter sido de interesse especial para della Valle, que, na época, estava trabalhando em seu dicionário de turco. Ao contrário de muitos de seus outros projetos, este foi concluído e preparado para impressão, apesar de nunca ter sido publicado. Também se interessava por religião. Ainda existe uma cópia de uma carta enviada a ele por “Mir Muhammad el Vehabi [al-Wahhabi], um nobre de Isfahan” para continuar sua discussão anterior sobre assuntos religiosos. 

Della Valle seguiu o Xá Abbas enquanto este viajava pelo seu reino. Seus encontros e conversas revelam, de forma rara e não oficial, como era ser entretido pelo monarca.

Em Qazwin, no inverno de 1618, o Xá Abbas se reuniu com embaixadores estrangeiros e della Valle tentou obter todas as informações possíveis. Considerou os russos muito rudes, mas ficou fascinado com o zoológico dado como presente pelo embaixador indiano. O idoso embaixador espanhol Don Garcia da Silva y Figueroa também compareceu. Seus diários contêm um complemento interessante ao relato de della Valle.

A coleta terminou e, apesar de doente, della Valle conseguiu retornar a Isfahan com Ma‘ani, chegando em dezembro. Lá, encontraram alguns parentes dela, incluindo seus pais, que tinham vindo para uma visita. Pela primeira vez, della Valle mencionou Mariuccia, uma menina da Geórgia de cerca de oito anos de idade que ficou órfã na época da conquista da Geórgia pelos persas. Ela fora adotada por Ma‘ani, em parte, talvez, como consolo por ainda não ter um filho.

Em junho de 1619, houve outro grande conclave de embaixadores. Della Valle forneceu um relato vívido e, muitas vezes, divertido das festividades, incluindo as que foram organizadas para as senhoras, das quais Ma‘ani fez um relatório completo. Também ficamos sabendo que, durante a noite, o xá vagava pela cidade visitando cafés e lojas, incluindo a de um negociante de arte italiano que vendia, entre outras coisas, “retratos como os que são vendidos por uma coroa na Piazza Navona (...), mas que aqui custam dez cequins e são considerados baratos”. Uma coroa (coronato) era uma moeda de prata napolitana; um cequim (um zechinno veneziano) era uma moeda de ouro que pesava cerca de 3,5 gramas. Portanto, a margem de lucro era substancial.

Durante o período passado em Isfahan, della Valle tratou de vários assuntos, dos mais sérios aos mais frívolos: seu gosto crescente pela culinária local e como iria se readaptar à comida em casa; as diferentes técnicas para armazenar gelo; e seus planos para exportar gatos persas (dos quais tinha vários) para a Itália. Suas descrições estão repletas de palavras árabes e persas, principalmente termos técnicos e expressões do dialeto destinados a Schipano, mas ainda interessantes hoje em dia.

Um fator, entre muitos outros, é impressionante para a época: a eficiência do sistema de correio em todo o mundo islâmico. É difícil determinar o número exato de cartas de della Valle para Schipano, dado seu hábito de escrever cartas em forma de diário e, às vezes, começar e encerrar seções com saudações. Contudo, parece que havia pelo menos 36. De suas missivas, apenas uma está desaparecida e foi perdida pelo próprio Schipano. Por outro lado, quando della Valle se queixava de ter recebido cartas de Veneza, Sicília, França, Espanha, Constantinopla, Bagdá e Índia, mas nenhuma de seu amigo, era porque Schipano não havia escrito há mais de dois anos, não por causa de uma falha do serviço postal.

A família de Ma‘ani queria retornar à Bagdá. A saúde de della Valle estava ruim, afetada pelo inverno rigoroso de 1620-1621, que se acredita ter sido o mais frio desde 1232. Da mesma forma, ele começou a pensar em sua casa. Entretanto, a política internacional afetou seus planos. A guerra entre a Pérsia e a Turquia resultou no bloqueio da rota de Aleppo. Por isso, ele e vários europeus ficaram efetivamente presos. Além disso, a Pérsia havia se unido aos britânicos para expulsar os portugueses de Hormuz, na extremidade sul do Golfo Árabe, deixando a rota incerta e perigosa. Mesmo assim, eles partiram.

No caminho, pararam em Persépolis, que, como de costume, della Valle descreveu em detalhes, embora nem sempre com precisão, pois estava com uma pressa um tanto quanto incomum.

De Persépolis, viajaram para Shiraz e, em seguida, partiram para a costa. Estavam animados, pois Ma‘ani havia finalmente engravidado. Foi então que souberam que as hostilidades tinham começado em Hormuz, onde pretendiam embarcar para a Europa via Índia.

O brasão de armas criado para Ma‘ani della Valle, que morreu em Minab, perto de Hormuz, em 1621, aos 23 anos, abre o volume memorial produzido para seu funeral em Roma, em 1626. A inscrição, em siríaco, diz: “A serva / de Deus / Ma‘ani”.
Ma‘ani é retratada nesta edição das viagens de della Valle, publicada em 1982, em Bagdá.
Acima: O brasão de armas criado para Ma‘ani della Valle, que morreu em Minab, perto de Hormuz, em 1621, aos 23 anos, abre o volume memorial produzido para seu funeral em Roma, em 1626. A inscrição, em siríaco, diz: “A serva / de Deus / Ma‘ani”. Parte superior: Ma‘ani é retratada nesta edição das viagens de della Valle, publicada em 1982, em Bagdá.

Decidiram esperar em Minab, nas proximidades, onde havia um grupo de comerciantes ingleses (um deles era um velho amigo de della Valle) para ver o que aconteceria. No entanto, o lugar era insalubre. Mariuccia adoeceu primeiro, seguida por todos os membros da comitiva. Em 30 de dezembro, sua amada Ma‘ani morreu. Ela tinha 23 anos.

Della Valle mal sabia o que fazer a seguir. Ele não podia suportar a ideia de deixar Ma‘ani nesse lugar e ordenou que fosse embalsamada – algo que as mulheres locais surpreendentemente faziam com muita competência – e colocada em um caixão para levar consigo e enterrá-la na Itália. Depois, muito doente, ele e sua comitiva continuaram a viagem. Ele disse que não se lembrava de quase nada sobre a viagem até um mês após a morte de Ma‘ani, quando chegou a Lar (quase 300 quilômetros a oeste) e sofreu um colapso. Lá, recuperou-se lentamente sob os cuidados de um médico extremamente competente e na companhia de seus amigos eruditos. “Em nenhum lugar”, escreveu ele, “em que estive na Ásia – na verdade, no mundo inteiro – encontrei tantos homens instruídos e cientistas ilustres como em Lar”.

Alguns meses depois, della Valle encontrou-se novamente em Shiraz e, por fim, no inverno de 1623-1624, ele e Mariuccia (então com 12 anos) partiram para a Índia. As cartas de della Valle tratam principalmente de suas experiências em Goa, mas também há alguns relatos muito interessantes e incomuns sobre os reinos menores ao sul, entre Goa e Calicute. Inclusive ali, procurou manuscritos e conseguiu adicionar um livro de folha de palmeira, bem como a caneta usada para gravá-lo, à sua coleção, além de uma descrição exata do processo de produção.

Ele não teve muitas oportunidades de viajar nas regiões do Império Mogol da Índia; aquilo que disse acrescentou pouco aos relatos muito mais completos de outros viajantes. Em Goa, porém, continuou se correspondendo com seus amigos instruídos de Lar e Isfahan e trabalhou em vários projetos literários.  

O selo de Ma‘ani della Valle, que aparece em seu volume memorial multilíngue, repete o texto siríaco de seu brasão de armas.
O selo de Ma‘ani della Valle, que aparece em seu volume memorial multilíngue, repete o texto siríaco de seu brasão de armas.

Em 04 de novembro de 1624, della Valle escreveu sua última carta a Schipano, na Índia, e em 17 de dezembro, partiu para Basra via Mascate. Depois de uma parada em Nápoles para ficar com Schipano, ele finalmente chegou a Roma em 04 de abril de 1626. Com seu dramatismo habitual, escreveu que entrou em sua casa pela porta dos fundos, “como é apropriado para um viúvo”.

Della Valle viveu o resto de sua vida em Roma, participou de várias atividades intelectuais e musicais e permaneceu se correspondendo com importantes estudiosos do Oriente, tanto no Oriente como no Ocidente. A Signora Ma‘ani foi enterrada na Igreja de Aracoeli e quando Mariuccia – que Ma‘ani havia confiado a della Valle em seu leito de morte – chegou a uma idade adequada, ele se casou com ela. Tiveram 14 filhos.

O primeiro volume das cartas de della Valle foi publicado em 1650. Depois de sua morte, em 1652, quatro de seus filhos publicaram os dois volumes restantes em 1658 e 1663. Eles foram rapidamente traduzidos para o francês, alemão e holandês e, parcialmente, para o inglês. Como il Pellegrino havia desejado, tornaram-se uma importante fonte de informações sobre o mundo muçulmano.

Caroline Stone Caroline Stone divide seu tempo entre Cambridge e Sevilha. Seu livro mais recente é The Curious and Amazing Adventures of Maria ter Meetelen: Twelve Years a Slave (1731–43), traduzido com Karen Johnson e publicado pela Hardinge Simpole em 2011.

 

This article appeared on page 20 of the print edition of Saudi Aramco World.

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