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Volume 65, Número 1Janeiro/Fevereiro de 2014

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A Casbah de Argel: Arca ameaçada—escrito por Louis Werner, fotografias de Kevin Bubriski
A Casbah atual abriga cerca de 80.000 pessoas entre as 3,5 milhões que vivem na grande Argel, capital da Argélia. Seu nome se deve ao al-qasbah (o forte) que ficava acima do porto.
A Casbah atual abriga cerca de 80.000 pessoas entre as 3,5 milhões que vivem na grande Argel, capital da Argélia. Seu nome se deve ao al-qasbah (o forte) que ficava acima do porto.

A Casbah de Argel desce a encosta e avança até a costa do Mediterrâneo. Já foi comparada com a arca de Noé—repleta de vida—e com as sementes de uma pinha—firmemente fechada. Há 300 anos, um nostálgico marinheiro inglês aprisionado dentro das muralhas do distrito caiado de branco lembrou: “Vista do mar, parece com a gávea de um navio”. Leo Africanus, viajante do século XVI, observou suas muitas padarias, enquanto, 600 anos antes, o geógrafo Ibn Hawkal elogiou a água límpida que vertia de suas muitas fontes.

T local já era habitado no início do século VI AEC por comerciantes fenícios, seguidos por cartagineses que comercializavam nas ilhas próximas à costa. Então, “várias tribos berberes, romanos, bizantinos e árabes (a partir do século VII EC) cobiçaram e, por fim, tomaram a cidade de forma alternada”, menciona a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Seguiram-se períodos de controle espanhol e turco, que culminaram em 13 décadas de domínio francês, a partir de 1830.

Em 1880 (imagem superior), os franceses haviam aberto avenidas na região conhecida como baixa Casbah. 
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IMAGEM SUPERIOR: dea/a. dagli orti/getty images;
ACIMA: roger viollet/getty images
Acima: Vista do mar em uma gravura datada de quatro anos após o fim da última guerra entre argelinos e ingleses, em 1682. A densa Casbah, que é trapezoidal e fica em uma encosta, poderia realmente parecer “com a gávea de um navio”. Em 1880, (imagem superior), os franceses haviam aberto avenidas na região conhecida como baixa Casbah.

O forte—al-qasaba—(que fica acima do bairro) dá nome à área. Já foi um local de jardins e palácios, mas, agora, contém principalmente as ruínas das casas de cidadãos comuns. Os franceses fizeram grandes avenidas na metade inferior da Casbah depois de sua chegada. Também nomearam as ruas em homenagem aos seus próprios compatriotas e lugares: Charlemagne, Chartres, etc. Enquanto isso, Argel se expandiu ao longo da baía e um novo distrito europeu ocupou o território ao lado da cidade antiga.

Portanto, a Casbah forma o ventrículo direito do coração pulsante da cidade. O sangue da nação passa por ela e foi nela que se derramou muito sangue durante a Guerra da Independência da Argélia. Sempre um espaço pequeno e contestado no centro da história da Argélia, ela contém cerca de 60 hectares de casas construídas próximas umas das outras. Entre elas, passam rues (ruas), ruelles (vielas) e impasses (becos sem saída), que, se colocados de ponta a ponta, criariam uma extensão de 15 quilômetros onde é muito fácil de se perder.  

Estima-se que a população da Casbah seja de 80.000 pessoas hermeticamente embaladas, dentro de uma cidade que tem mais de 3,5 milhões de habitantes.

É possível que o inglês Samuel Purchas, responsável pela publicação de relatos de viagens do mundo todo no início do século XVII, tenha feito a avaliação mais pomposa da Casbah. Chamou-a de “o Redemoinho destes Mares, o Trono da Pirataria, o Tombamento do Comércio e o Fedor da Escravidão … o Receptáculo de Renegados de Deus e Traidores de seus Países”.  

“Muitas pessoas vivem aqui hoje sem lembrança do que veio antes, nem de sua cultura ou de sua história”, diz Zubir Mamou, 78 anos. Morador da Casbah por quase toda a sua vida, ele frequentemente fala para grupos de estudantes visitantes.
“Muitas pessoas vivem aqui hoje sem lembrança do que veio antes, nem de sua cultura ou de sua história”, diz Zubir Mamou, 78 anos. Morador da Casbah por quase toda a sua vida, ele frequentemente fala para grupos de estudantes visitantes.

Em resumo, foi um porto seguro na margem de um mar turbulento; o porto de origem de uma frota de corsários, onde europeus, incluindo Miguel de Cervantes—que fez o comentário sobre a arca de Noé—eram aprisionados e mantidos à espera de resgate, mas raramente escravizados e vendidos; e o local onde alguns cristãos “se tornaram turcos”, como Shakespeare disse em Otelo, e muitos lutaram contra seus próprios compatriotas.  

Uma das histórias de cativeiro mais incomuns foi a do pintor florentino do século XV Fra Filippo Lippi, que conquistou a liberdade depois de pintar o retrato de seu captor.“Um dia, percebendo que fora colocado em constante contato com seu mestre”, escreveu Giorgio Vasari, o biógrafo dos artistas italianos, “surgiu a oportunidade e o desejo de fazer um retrato dele. Assim, pegando um pedaço de carvão do fogo, retratou seu mestre de corpo inteiro, vestido em seus trajes mouriscos, em uma parede branca.Quando o mestre ficou sabendo que Lippi havia feito o que parecia um milagre, pois o desenho e a pintura não eram conhecidos na região, ordenou que o artista fosse solto das correntes que o prendiam já há tanto tempo”.

Em 1622, um capitão genovês chamado Piccinini se converteu ao islamismo, adotou o nome de Ali Bitchnine, casou-se com a filha de um sultão berbere, patrocinou a construção de uma mesquita e se tornou almirante da famosa armada de corsários de Argel.Em qualquer ano durante o século XVII, centenas de prisioneiros europeus foram mantidas em Argel; muitos deles haviam sido sequestrados de suas próprias costas por corsários. A historiadora Linda Colley sugere que a Guerra Civil Inglesa de 1642 foi causada, em parte, pela infelicidade da população com os reis Stuart por não proteger o litoral da Grã-Bretanha. O dey de Argel repreendeu Carlos II em 1672 por não comprar a liberdade de seus compatriotas, assim como faziam os reis espanhóis. A guerra final entre a Inglaterra e Argel, ocorrida entre 1677 e 1682, resultou em 3.000 reféns tirados de 500 navios ingleses.

Um deles foi um capitão genovês chamado Piccinini, que se converteu ao islamismo em 1622, adotou o nome de Ali Bitchnine, casou-se com a filha de um sultão berbere, se tornou almirante da famosa armada de corsários e patrocinou a construção de uma mesquita. Chamar essa história de um “redemoinho” não é exagero.

Usando redes pintadas como gol, meninos brincam em uma pequena praça enquanto uma mulher desce uma das ruas de pedra da alta Casbah, onde a rua mais íngreme tem 472 degraus.
Usando redes pintadas como gol, meninos brincam em uma pequena praça enquanto uma mulher desce uma das ruas de pedra da alta Casbah, onde a rua mais íngreme tem 472 degraus.
Mapa

Os problemas entre Argel e poderes europeus—e também com a América—em relação à predação dos corsários locais avançaram até o início do século XIX. Em 1816, uma frota anglo-holandesa bombardeou a cidade e fez o dey prometer que iria frear os corsários. 

A construção das muralhas e portas no perímetro da Casbah, incluindo Bab al-Oued a oeste e Bab Azzoun a leste, começou no início do século XVI, quando Baba Aruj (“velho Aruj”) e seu irmão Khayr al-Din—piratas turcos da ilha de Lesbos no Mar Egeu—foram convidados pelo Emir de Argel para expulsar os ocupantes espanhóis. Quando o maneta Baba Aruj morreu durante uma batalha em 1518, Khayr al-Din assumiu o controle, colocando a cidade e sua frota de corsários sob a égide otomana, pelo menos nominalmente.

Mais tarde, Khayr al-Din se tornou o maior almirante da marinha otomana e o flagelo dos marinheiros europeus, que haviam entendido errado o nome Baba Aruj e chamavam a ele e seu irmão de “Barbarousse” em francês e “Barbarossa” em italiano—ou “Red Beard” (Barba Vermelha) em inglês. A estátua de Khayr al-Din, localizada do lado de fora das muralhas da Casbah, perto de uma notória prisão francesa que costumava ter seu nome, se tornou alvo de uma zombaria equivocada: Ele é mostrado com os dois braços, mas para os moradores da Casbah, assim como para os franceses, um Barbarousse é muito parecido com o outro. Por isso, dizem que ele tem um braço a mais.

Para a arquiteta Houria Bouhired—cujo primeiro nome significa liberdade e cuja família foi fundamental na guerra pela independência da Argélia de 1954 a 1962—, a própria Casbah “representava a liberdade, um lugar em que eu podia brincar nos terraços, me esconder em becos e aprender a ser eu mesma. Pensei que, se o planejamento de uma cidade podia me fazer sentir assim, é claro que queria me tornar uma planejadora urbana”. No interior de sua casa, paredes falsas e este respiradouro estão ligados a um esconderijo usado pelo líder da libertação Ali la Pointe.
Esquerda: Para a arquiteta Houria Bouhired—cujo primeiro nome significa liberdade e cuja família foi fundamental na guerra pela independência da Argélia de 1954 a 1962—, a própria Casbah “representava a liberdade, um lugar em que eu podia brincar nos terraços, me esconder em becos e aprender a ser eu mesma. Pensei que, se o planejamento de uma cidade podia me fazer sentir assim, é claro que queria me tornar uma planejadora urbana”. Direita: No interior de sua casa, paredes falsas e este respiradouro estão ligados a um esconderijo usado pelo líder da libertação Ali la Pointe.

Toje em dia, ao guiar um passeio pelas ruas do bairro onde cresceu, a arquiteta Houria Bouhired normalmente parte da Haute Casbah e desce os 472 degraus da Rue de la Casbah, que vai em linha reta de cima para baixo. Houria significa “liberdade” em árabe. Seu nome não foi uma escolha aleatória, pois ela vem de uma família de grandes patriotas da Casbah que desafiou os franceses durante os primeiros anos da guerra pela independência (1954-1962).

Soldados franceses mataram seu pai, Mustafa, e largaram seu corpo na ruelle onde ela brincava. Sua prima Djemila (uma militante de 20 anos) foi presa e condenada à morte em um julgamento que foi notícia no mundo todo, mas acabou sendo libertada. Em 1958, enquanto Djemila ainda estava na prisão, o diretor egípcio Youssef Chahine fez o filme biográfico Jamila the Algerian (Jamila, a Argelina) sobre seu caso, que se tornou um grito de guerra do anticolonialismo.  

O desejo de liberdade era forte na família: Depois de ser espancada e aprisionada, a mãe de Houria, Fatiha, ganhou fama por friamente fazer jogo duplo: Posou como informante enquanto descaradamente abrigava Saadi Yacef, líder da ala militar de Argel da FLN (Frente de Libertação Nacional), e Ali la Pointe, principal agente de Yacef na Casbah, em sua casa localizada na Rue de Caton. La Pointe é o herói do premiado filme de 1966 do diretor italiano Gillo Pontecorvo, intitulado La Battaglia di Algeri (A Batalha de Argel).

Em suas memórias sobre a Batalha de Argel, Yacef não chama seu sobrinho de 12 anos—que trabalhou como vigia e morreu ao lado de Ali—de “Petit Omar,” como é chamado no filme e no mural da Place des Martyrs, mas, simplesmente, de très jeune, muito jovem. Para Houria, Omar não foi apenas uma criança heroica, mas também um especialista em bolinha de gude e outros jogos de rua.

“Tornei-me arquiteta por uma simples razão—por causa da Casbah da minha infância”, conta ela, de forma semelhante. “Representava a liberdade, um lugar em que eu podia brincar nos terraços, me esconder em becos e aprender a ser eu mesma. Pensei que, se o planejamento de uma cidade podia me fazer sentir assim, é claro que queria me tornar uma planejadora urbana”.

A Casbah “tem um futuro porque tem um passado; precisamos lutar para preservar nosso passado simplesmente a fim de seguir em frente”, diz o nativo Belkacem Babaci (imagem superior), presidente da Fondation Casbah, que fornece serviços sociais e consertos para casas, ruas, encanamento e muito mais.
Em uma rua do lado de fora das antigas muralhas da Casbah, em frente ao que já foi uma prisão francesa, há uma estátua de Khayr al-Din, o pirata turco que, a convite do emir de Argel, expulsou os espanhóis no início do século XVI.
A Casbah “tem um futuro porque tem um passado; precisamos lutar para preservar nosso passado simplesmente a fim de seguir em frente”, diz o nativo Belkacem Babaci (imagem superior), presidente da Fondation Casbah, que fornece serviços sociais e consertos para casas, ruas, encanamento e muito mais. Acima: Em uma rua do lado de fora das antigas muralhas da Casbah, em frente ao que já foi uma prisão francesa, há uma estátua de Khayr al-Din, o pirata turco que, a convite do emir de Argel, expulsou os espanhóis no início do século XVI.

A ideia de liberdade física de Houria é refletida nas palavras de Antonio de Sosa, amigo de Cervantes e seu companheiro de aprisionamento, que comparou a Casbah com uma pinha e escreveu, em seu relato de 1612, intitulado Topografia de Argel, que ela era “tão densa e as casas tão próximas que … quase era possível andar pela cidade inteira por cima dos telhados”. No capítulo “História do Cativo” deDom Quixote, baseado nas lembranças que o próprio Cervantes tinha do local, ele descreve “as janelas da casa de um mouro rico e importante, que, como é habitual nas casas mouriscas, pareciam-se mais com lacunas do que janelas e, mesmo assim, eram cobertas por treliças grossas e estreitas”.

A casa da família Bouhired corresponde a essa descrição e tem um pátio interno—o wasat al-dar ou centro da casa—cercado por três galerias superiores (todas cobertas de azulejos e com arcos em forma de ferradura), além de um telhado plano. Também funciona como uma espécie de santuário. Uma placa colocada na porta da frente diz tudo: “A Casa do Shahid [“mártir”] Mustafa Bouhired, Restaurada em Memória dos Mártires de Novembro de 1954”. Uma parede falsa sobre a escada dá acesso ao esconderijo de Ali la Pointe. Um respiradouro localizado no quarto de Zubir Mamu, o desenvolto inquilino de Houria de 78 anos que passou quase toda a vida na Casbah, leva até lá. “Não consigo não pensar nele sempre que olho para lá”, diz.

No terreno onde, em 1957, paraquedistas franceses explodiram a casa na Rue de Caton, matando Ali la Pointe e mais de uma dúzia de companheiros, existe agora um memorial com a bandeira da Argélia e recordações.

No terreno onde, em 1957, paraquedistas franceses explodiram a casa na Rue de Caton, matando Ali la Pointe e mais de uma dúzia de companheiros, existe agora um memorial com a bandeira da Argélia e recordações.

Interpretado por Brahim Haggiag em uma cena do clássico filme de 1966 La Battaglia di Algeri (A Batalha de Argel), Ali la Pointe ouve o jovem primo do líder rebelde Saadi Yacef.
KOBAL/RECURSO ARTÍSTICO
Interpretado por Brahim Haggiag em uma cena do clássico filme de 1966 La Battaglia di Algeri (A Batalha de Argel), Ali la Pointe ouve o jovem primo do líder rebelde Saadi Yacef.

A casa do próprio Mamu, situada na Rue de Lyon, agora está, como ele diz tristemente, disparu (“desaparecida”); o Cinema Étoile de sua juventude está fermé (“fechado”). Na Rue Bleu, ele passa pela antiga casa (agora abandonada) do falecido Mostefa Lacheraf, autor do estudo sobre o nacionalismo argelino intitulado L’AlgérieNation et Société, no qual chamou a Casbah de monde aboli ou “mundo abolido”. “A Casbah”, diz Mamu, “não é como era antes. Hoje, vivem aqui muitas pessoas que não têm memória daquilo que veio antes, nem de sua cultura ou história, nem daquilo que aconteceu aqui na independência e durante nossa luta”.

O fato de que Mamu chama as ruas da Casbah por seus nomes franceses indica uma lacuna entre as gerações. Quando os franceses chegaram, as ruas eram conhecidas simplesmente por um marco nas proximidades, como um poço, porta ou mercado; assim, pintaram linhas coloridas ao longo das paredes externas para ajudar a traçar um caminho através do labirinto. Mamu conhece as ruas pelos nomes de cores franceses. Após a independência, as ruas foram renomeadas em homenagem aos heróis argelinos—muitos deles mortos nas próprias passagens. Placas marcam esses locais, como a placa da Rue Rachid Khabash onde Abdel Rahman Arbaji levou um tiro no telhado e caiu para a morte em frente à porta do número 39. 

Em Bir Djebah, “o poço do apicultor”—uma das seis fontes públicas que ainda funcionam na Casbah (já houve mais de 150)—uma placa homenageia os quatro companheiros de luta Touati Said, Radi Hmida, Rahal Boualem e Bellamine Mohamed. “Condenados à Morte”, ela diz com grande precisão, “Guilhotinados na Madrugada de 20 de Junho de 1957, entre 3h25 e 3h28 da Manhã, na Prisão Barbarousse”.

A prisão ocupa um lugar especial na memória de Lounis Aït Aoudia, presidente de um grupo de revitalização cultural chamado Os Amigos da Rampe Louni Arezki. (Rampe é a palavra francesa para uma rua acentuada; Louni Arezki é o nome de outro combatente da liberdade guilhotinado.) “Quando era criança, a janela do meu quarto ficava logo abaixo das paredes da prisão”, lembra Aït Aoudia. “Nos dias em que havia execução, eu acordava antes do amanhecer por causa das vozes altas dos prisioneiros. Eles cantavam nosso hino de liberdade: ‘De nossa montanha, a voz da liberdade está subindo!’. Minha mãe chorava, o rosto do meu pai empalidecia e eles me diziam para voltar a dormir. Porém, ouvi a mesma música 90 vezes para os 90 prisioneiros que foram executados naquele ano”.

Recentemente, Aït Aoudia trouxe outro nativo da Casbah, o economista morador de Viena Kader Benamara, autor da biografia Éclats de soleil et d’amertume (Centelhas de Sol e Amargura), de volta para casa para uma leitura do livro. “Somente 10% das casas da Casbah são ocupadas por seus proprietários—todos os outros moradores são posseiros do interior”, comenta Benamara. “Nosso trabalho é lhes ensinar um pouco de história, ensinar-lhes que a Casbah foi o local do recomeço da nossa nação, de sua riqueza e de seu orgulho”.

Embora a UNESCO tenha chamado a Casbah de “uma forma única de medina ou cidade islâmica” e inserido a região em sua Lista do Patrimônio Mundial em 1992, e a Argélia tenha determinado sua proteção em 2003, a deterioração ameaça seu futuro.Benamara nasceu no porão do número 17 da Rue Randon durante o bombardeio aéreo alemão da força de desembarque britânico-americana em dezembro de 1942. Seu nome é uma homenagem ao general francês Jacques Louis Randon, que “pacificou” a região montanhosa de Kabylie, na costa da Argélia, na década de 1850; foi renomeada como Rue Amar Ali, o verdadeiro nome de Ali la Pointe. 

“Para uma criança como eu”, diz Benamara, “a Casbah era um lugar mágico dia e noite; um bairro de pessoas comuns, de carne e osso, mas também habitado pelos fantasmas de todos que já viveram lá. Ainda posso ver, como se estivesse sonhando, o vendedor de doces passando pelas ruas. Ele gritava tão alto que podia fazer sua cabeça explodir: ‘Meus doces fazem todos seus problemas desaparecerem!’ As crianças começavam a salivar assim que o escutavam”.

É possível que a pessoa mais dedicada ao renascimento urbano da Casbah seja Belkacem Babaci, presidente da Fondation Casbah, que fornece serviços sociais aos moradores e defende o conserto de sua infraestrutura. Quando uma casa está em perigo de desabar ou os vizinhos não conseguem chegar a um acordo sobre um vazamento do encanamento em uma parede comum, ele é chamado. Babaci nasceu no suntuoso Palais des Raïs, a sede do almirantado da Argélia e, anteriormente, dos corsários bárbaros. “Meu avô era capitão”, conta ele, “o que nos deu o direito de morar ali. Por isso, sei como a arquitetura da Casbah era bela.

Sete medalhões, emoldurados por motivos florais e de concha, decoram um painel esculpido e pintado sobre uma porta. Os medalhões dos painéis laterais dizem “[não há] nenhum vencedor além de Deus”.

Sete medalhões, emoldurados por motivos florais e de concha, decoram um painel esculpido e pintado sobre uma porta. Os medalhões dos painéis laterais dizem “[não há] nenhum vencedor além de Deus”.

Antigamente, existiam cerca de 150 fontes de água públicas; hoje, restam apenas seis.
Antigamente, existiam cerca de 150 fontes de água públicas; hoje, restam apenas seis.

“Em 1830, antes da chegada dos franceses, podia-se dizer que a cidade de Argel era a Casbah. Hoje em dia, a Casbah é apenas uma parte da cidade. Na verdade, um pequeno pedaço. A antiga cidadela cresceu e englobou tudo—do bairro residencial que fica no alto até a cidade moderna na parte baixa, onde os franceses avançaram até a praia com arcadas amplas e ruas comerciais. Eles derrubaram as muralhas e portas da cidade, desde Bab Azzoun no leste até Bab al-Oued no oeste, e converteram as mesquitas em igrejas. Palácios foram derrubados para criar praças públicas ou transformados em museus. O parque mais conhecido da Casbah—Place des Martyrs, nomeado em homenagem aos nossos heróis de guerra—costumava ser o mais belo palácio de Argel”.

O museu de caligrafia Dar Mustafa Pasha e o museu de artes e tradições populares Dar Khedaoudj (ambos restaurados até recuperar a beleza que a maioria das casas particulares da Casbah costumava ter) ajudam a contar a história do bairro. Aziza Aïcha Amamra, diretora do Dar Khedaoudj, nasceu na casa de sua mãe na jabal—a montanha, como ela chama—na Haute Casbah. Folclorista formada, ela lembra as músicas do Ramadã, cantadas enquanto as pessoas que estavam em jejum esperavam o sinal do canhão para fazer a primeira refeição do dia: “Chame-nos, chame-nos à oração, oh Shaykh! O canhão fez ‘bum bum!’ Então, estou pronto para comer! Que fome!”

As lembranças de infância de Belkacem Babaci nem sempre são benignas. “Lembro-me da terrível discriminação dos franceses”, relata. “Independentemente de minhas notas na aula de francês, que sempre eram ‘superiores’, precisava sentar atrás do aluno francês mais preguiçoso. Os professores não aceitavam que um indigène, ou nativo, como nos chamavam, pudesse falar mais perfeitamente do que um dos seus, apesar de a Argélia supostamente ser parte integrante da França e de sermos, na teoria, cidadãos franceses”.

Meninos brincam abaixo das ruínas da casa de Ali la Pointe, na parte que não foi restaurada como um memorial aos sacrifícios da independência. Entre as outras casas da Casbah, somente 10% estão atualmente ocupadas por seus proprietários, conta Belkacem Babaci, diretor da Fondation Casbah.
Meninos brincam abaixo das ruínas da casa de Ali la Pointe, na parte que não foi restaurada como um memorial aos sacrifícios da independência. Entre as outras casas da Casbah, somente 10% estão atualmente ocupadas por seus proprietários, conta Belkacem Babaci, diretor da Fondation Casbah.

Babaci comenta que os moradores da Casbah zombavam dos colonizadores franceses com um senso de humor seco. “Usávamos burros para entregar e coletar lixo”, recorda, “e, assim como os motoristas de ônibus, conheciam todas as casas. Demos-lhes nomes satíricos—como Isabel e Fernando, os soberanos espanhóis que expulsaram muitos dos primeiros moradores da Casbah da Península Ibérica em 1492, ou Carlos V, cuja marinha de 500 navios não conseguiu, desastrosamente, assumir o controle de Argel em 1541. Assim, os condutores dos burros gritavam: ‘Vire à esquerda, Isabel; vire à direta, Carlos’”.

Babaci conta que as consequências da revolução argelina—quando cerca de 10.000 moradores abandonaram o local—, assim como a guerra civil da década de 1990, deterioraram o tecido social da Casbah. Com ironia, ele observa que o local já foi uma prisão para europeus e, mais tarde, durante a guerra da independência, um campo de concentração comandado pelos franceses, mas se tornou o fim da linha dos posseiros. No entanto, ele acredita firmemente que a Casbah “tem um futuro porque tem um passado; precisamos lutar para preservar nosso passado simplesmente a fim de seguir em frente”.

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Em sentido horário, a partir da esquerda: Uma menina posa apoiada em uma coluna em sua casa. Em frente ao arco em forma de ferradura que leva à sua casa, Miraoui Smain usa um chechia, o apertado chapéu argelino de uma geração anterior de nacionalistas. “Muitos não sabem o que meu chapéu significa. Fiz parte da nossa luta pela liberdade”, explica. Meninos posam na alta Casbah. O ferreiro Hachemi Benmira continua vendendo bandejas e cafeteiras, apesar da escassez de visitantes na alta Casbah.

A UNESCO chama a Casbah de “uma forma única de medina ou cidade islâmica”, destacando sua “considerável influência no planejamento urbano (...) no Norte da África, Andaluzia e África Subsaariana” nos séculos XVI e XVII. Em 1992, colocou o local em sua Lista do Patrimônio Mundial. Em 2003, a Argélia designou a Casbah como um setor protegido, em função daquilo que a UNESCO chama de “necessidade contínua de prevenir a deterioração do tecido urbano”. Mas, nos últimos tempos, por causa de desatenção, ela tem sido ameaçada de desclassificação pelo organismo da ONU.

Zekagh Abdelwahab supervisiona o Plano de Proteção da Casbah do Ministério da Cultura da Argélia, que fornece consertos de emergência para casas que oferecem risco de desabamento. Atualmente, parece que cavilhas mantêm muitas estruturas em uma posição ereta. Vigas de madeira sustentam paredes inclinadas, sacadas rachadas que pendem sobre as ruas e arcos vergados que emolduram as arcadas de pátios.  

Cerca de 700 casas já receberam atenção urgente de Abdelwahab. “A Casbah foi duramente atingida por muitas agressões, desde danos causados por terremotos até fundações de pedra que se dissolvem por causa do vazamento de tubulações de água”, afirma Abdelwahab. “A maioria das casas é ocupada por moradores que se recusam a sair durante o conserto; nossa função é trabalhar ao redor deles”. As consequências da negligência estão sempre presentes: espaços vazios cheios de lixo na malha urbana irregular onde casas desabaram, como buracos em uma boca cheia de dentes tortos.

Abdelwahab e sua equipe de arquitetos estão muito decepcionados com a presença quase assombrada da Casa Centenária na Haute Casbah. É um tipo de casa artificial para exposição construída pelos franceses em 1930 a partir de pedaços dos muitos palácios históricos e outras casas que haviam derrubado (ou permitido que caíssem) durante os 100 anos anteriores.  

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Em sentido horário, a partir do canto esquerdo superior: As janelas de treliça feitas com torno mecânico pelo marceneiro Khaled Mahiot são muito tradicionais. Podem parecer familiares para o escritor espanhol Miguel de Cervantes, que ficou preso na Casbah no século XVI. Ao longo da Rue Ben Chenab, a rua do mercado que divide a alta e a baixa Casbah, um jovem vende laranjas. Halim Ouaguenouni cuida da loja de doces de sua família, que é enfeitada com azulejos decorativos e as parafernálias de um torcedor de futebol. Um menino posa em frente a uma loja que reflete a longa história da Casbah.

Não é suficiente que o marceneiro Khaled Mahiout, que se mudou da Basse Casbah para a Haute Casbah em busca de aluguéis mais baixos, ainda ganhe a vida girando seu torno mecânico para fazer as mesmas janelas treliçadas descritas por Cervantes, ou que o ferreiro Hashmi Benmira continue vendendo bandejas e cafeteiras perto do minarete na mesquita de Sidi Ramdane, datada do século XI. Esses distritos superiores não são bem frequentados, certamente não por turistas.

O octagenário Miraoui Smain fica em frente à sua casa na Rue Ben Chenab, que vai do leste ao oeste, separando a Haute Casbah da Basse Casbah. Ele usa um chechia, o apertado chapéu argelino de uma geração anterior de nacionalistas. Está muito distante das camisetas e bonés de beisebol virados para trás usados pelos jovens de hoje. “O que mais me incomoda a respeito deles não é que sejam pobres, mas que entendam mal as coisas”, explica. “Muitos não sabem o que meu chapéu significa. Fiz parte da luta pela liberdade. Fui testemunha da nossa tentativa de livrar a Casbah de seus vícios estrangeiros. Não é ruim retornar a algumas coisas do passado.”

A vista bruscamente íngreme da Casbah sobre o flanco inferior do Monte Bouzaréah, cercada por vestígios de muralhas do período otomano e, por sua vez, abaixo de uma cidadela que também precisa de reparos, pode não passar a confiança de que nosso novo século será gentil para com esse bairro envelhecido. Entretanto, aquilo que Antonio de Sosa escreveu em 1612 continua sendo verdade: “Pouco a pouco, este monte sobe até chegar ao topo. Assim, as casas continuam subindo morro acima; as mais altas se sobressaem sobre as mais baixas (...)”. Cada uma delas ajuda a vizinha a permanecer de pé, apesar da atração da gravidade e do esquecimento histórico.

Louis Werner Louis Werner  (wernerworks@msn.com) é escritor e cineasta. Ele mora na Cidade de Nova York.
Kevin Bubriski Kevin Bubriski (www.kevinbubriski.com) é fotógrafo documentarista e professor de fotografia no Green Mountain College, em Poultney, Vermont, Estados Unidos.

 

This article appeared on page 34 of the print edition of Saudi Aramco World.

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