 |
Uma vista do convés do Jewel of Muscat a partir do mastro de mezena: Cada prancha e placa é mantida no lugar com fibra de coco. |
Ondas enormes nos erguem até o céu e então nos mandam até as profundezas de seus vales enquanto rolam sob o casco. Ocasionalmente, ondas nos atingem com tal força que o ar comprimido abaixo escapa pelas escotilhas. A água derrama sobre a amurada de estibordo, cascateando por todo o convés e descendo as escadas - molhando tudo e todos abaixo. Agarrando-se ao cordame, a tripulação fica parada de pernas abertas em suas posições no convés.
Nós estamos indo para o leste, através da Baía de Bengala enfrentando ventos de 50 nós (92 km/h, 60 mph); nossas cordas estão tensas como aço e uma única vela para tempestade foi levada ao ponto de ruptura. Qualquer infortúnio agora certamente irá trazer o desastre. Ensurdecidos pela explosão da chuva contra os capuzes de nossas capas de chuva, nos seguramos, esperando que o barco de 18 metros (59") permaneça inteiro. Finalmente, após mais de duas horas de fúria, o vento e a chuva começam a diminuir. Embora a tempestade irá nos afligir por mais dois dias, o pior já passou. O Jewel of Muscat triunfou na maior prova em sua viagem de cinco meses através do Oceano Índico, saindo de Omã até Singapura.
Sobreviver a um ciclone tropical é um feito impressionante para qualquer barco à vela. Mas o Jewel of Muscat está em sua própria classe: O barco é uma reconstrução de uma nau árabe do século IX, e suas tábuas e armações são totalmente costuradas umas às outras, tornando-a um sucesso notável.
 |
Passar por um ciclone tropical na Baía de Bengala foi a mais dura prova para o Jewel of Muscat. |
Várias noites após a tempestade, estou em seu leme, contemplando a imensidão de estrelas que vai de horizonte a horizonte. Só estamos a dois nós (3,7 km/h, 2,5 mph), em águas tão calmas que refletem a luz de cada uma das estrelas e me dá a sensação de estar voando no espaço. Os únicos sons são os da água batendo contra o casco, de conversas abafadas em árabe, do ranger do convés e o chilrear de um grilo nos rolos de corda atrás de meus pés. Estamos em junho de 2010, mas o barco é uma máquina do tempo, nos levando a séculos no passado.
|
Zarpamos da capital de Omã, Muscat, há cerca de três meses e meio, mas a nossa viagem começou realmente em um dia comum de 1998, quando dois mergulhadores à procura de um novo leito de pepinos do mar a cerca de dois quilômetros (1,2 milhas) da ilha Belitung, na Indonésia, perceberam algo muito mais valioso no fundo do mar, a cerca de 17 metros (55') para baixo. Juntas em um pequeno morro, meio enterradas na areia, haviam pilhas de cerâmica chinesa, grandes jarros fortemente concretados e extremidades de vigas de madeira desgastadas. Os mergulhadores tinham descoberto os restos de um navio mercante árabe totalmente carregado com cerca de 1200 anos. O mais antigo naufrágio já encontrado no Oceano Índico, ele ofereceu a mais antiga e mais completa evidência sobre o comércio direto por via marítima entre a Península Árabe e a Pérsia no oeste e a China no leste.
 |
Quando a tempestade causou uma rachadura no mastro principal, a tripulação consertou-o com um pouco de corda sobressalente e de madeira que foi levada a bordo apenas para tais emergências.
|
A escavação do "naufrágio de Belitung" revelou 60 mil peças de cerâmica e outros artefatos. Estes incluíam os primeiros exemplares intactos de louça azul-e-branca chinesa, uma coleção pequena mas preciosa de objetos de prata e ouro, uma montagem fina de louça "verde salpicada" e uma tigela de Changsha, centro-sul da China, com a inscrição "décimo sexto dia do sétimo mês no segundo ano da era Baoli", ou seja, 826 d.C. A natureza da carga indicava que o navio havia começado sua viagem de volta no porto chinês de Guangzhou (Khanfu, em árabe). Isso se encaixa bem com os achados de Robert Harding, da Universidade de Cambridge, que escreve que os chineses começaram a exportar cerâmica de alta qualidade para o Oriente Médio durante a Dinastia Tang (618-907) e que os comerciantes muçulmanos começaram suas próprias viagens para a China em 807.
Depois de completamente carregado, o navio havia embarcado em uma viagem que unia as duas principais potências do mundo, a dinastia Tang, com sua capital em Chang'an (atual Xi'an), e o Império Abássida (750-1258), governado a partir de Bagdá. Os prováveis destinos do barco: Siraf, no sul do Irã, ou Basra, na entrada do Golfo. Era a mais longa rota de comércio marítimo da história, estendendo-se por cerca de 12 mil quilômetros (7.500 milhas), até a chegada dos europeus no Oceano Índico durante o século 15.
O naufrágio de Belitung e sua carga ofereceram uma oportunidade sem precedentes para que os historiadores descobrissem mais sobre o comércio primitivo entre o Oriente Médio e a Ásia, assim como sobre a construção naval e a navegação no período. Em 2005, reconhecendo que o naufrágio foi uma descoberta arqueológica extremamente importante, o governo de Cingapura comprou por US$ 32 milhões todo o conjunto de artefatos da empresa neozelandesa que tinha feito o trabalho de salvamento inicial e imediatamente começou uma análise minuciosa dos achados.
 |
 |
alessandro ghidoni |
Topo: O capitão Saleh al-Jabri um dos vários kamals do barco, que por milênios ajudaram navegadores a determinar a latitude utilizando as altitudes das estrelas. (Até o século XVIII não havia maneira de determinar a longitude.) "Essa viagem foi o meu maior desafio em 25 anos no mar," diz ele. Acima: A resistência do navio dependia da integridade de suas costuras. Cada emenda era costurada e preenchida com celulose de fibra de coco e cada furo era selado usando uma massa tradicional do Oceano Índico feita de giz, resina e óleo de peixe. |
A ilha de Belitung fica a cerca de 620 km (300 milhas) a sudeste de Singapura, este país mesmo localizado no lado sudeste do Estreito de Malaca - há tempos uma passagem fundamental para o comércio. Depois de comprar a carga, Cingapura abriu canais diplomáticos e acadêmicos para aproveitar ao máximo as oportunidades culturais, históricas e políticas criadas pela descoberta. O principal parceiro do governo nessa empreitada foi o Sultanato de Omã, no canto sudeste da Península Arábica, um país com uma ilustre herança marítima.
O Ministério de Relações Internacionais de Omã, em 2008, concordou em financiar a construção de um navio baseado da forma mais precisa possível naquele que naufragou em Belitung. O sultão Qaboos bin Sa'id, o regente de Omã, se interessou pessoalmente pelo projeto, nomeando a nau como Jewel of Muscat (a joia de Muscat) e decretando que, assim que construído, o navio seria um presente de Omã para o povo de Singapura. Em resposta, Singapura concordou em construir um museu especial para exibi-lo.
Para garantir que o navio atenda aos mais altos padrões de qualidade e autenticidade, os omanis convidaram o arqueólogo marítimo australiano Dr. Tom Vosmer, a maior autoridade do mundo sobre a história da construção naval árabe, para comandar a equipe de construção. Visavam não só reconstruir um navio árabe do século IX, mas também documentar suas características e durabilidade de velejo navegando-o através do Oceano Índico. Ambas as tarefas estavam repletas de desafios.
A tentativa de construir um autêntico navio do século IX em condições de navegar no século 21 era certamente difícil. Infelizmente, para historiadores modernos - mas para o grande mérito de tradicionais construtores de navios, que construíram suas naus totalmente a olho nu - virtualmente nenhum plano, registro ou descrições escritas sobre a construção naval árabe anteriores ao século 20 existem. Uma séria falha no projeto que um construtor naval teria visto instantaneamente doze séculos atrás pode não ser aparente até mesmo para o mais experiente arquiteto moderno, com consequências potencialmente desastrosas no mar.
 |
Começando em outubro de 2008, na aldeia costeira de Qantab, a sudeste de Muscat, Omã, a equipe de construtores navais e arqueólogos levou 17 meses para construir o Jewel of Muscat.
|
O naufrágio de Belitung foi útil em certa medida, mas apenas cerca de vinte por cento do navio original permaneceu suficientemente exposto no fundo do mar para que os escavadores o examinassem. Uma análise mais aprofundada dos destroços revelou que a madeira usada era predominantemente Afzelia africana, uma densa madeira que florescia ao longo da costa do Leste Africano no século IX e era ideal para a construção naval. Além disso, todos os componentes estruturais do navio - estruturas, vigas transversais e pranchas - eram totalmente costurados, à maneira dos tradicionais navios do oeste do Oceano Índico de ao menos dois milênios. As tábuas foram juntadas ponta a ponta, no estilo das caravelas, e costuradas em cruzado diretamente através do entabuamento, com massa em ambos os lados da costura. Estas características garantiram a Vosmer que os destroços de Belitung eram de proveniência do noroeste do Oceano Índico.
 |
alessandro ghidoni |
 |
alessandro ghidoni |
Topo: Com o casco construído primeiro, o navio precisou de mais de 20 toneladas de madeira, moldadas à mão. Acima: Cada prancha do casco foi passada no vapor para que se encaixasse perfeitamente na curva correta. "Ficamos com admiração das pessoas que, mais de mil anos atrás, derrubaram, transportaram e processaram essas gigantescas árvores [Afzelia]," diz Tom Vosmer. "A intensidade do trabalho foi impressionante." |
Informações em falta sobre a sua concepção e estrutura tiveram que ser adquiridas ou inferidas em textos históricos, iconografia e exemplos existentes ou fotografias de barcos árabes de pranchas costuradas. Essas informações foram analisadas e integradas usando o mais recente software de arquitetura naval. Em última análise, Vosmer e seus colegas australianos Nick Burningham e o arqueólogo marinho Dr. Mike Flecker, o escavador do naufrágio em Belitung, chegou a um design computadorizado que incorporava razoavelmente as provas que tinham em mãos - com o resultado final lembrando uma variação em larga escala de um barco indígena do Omã conhecido como battil.
Profissionais na Grã-Bretanha construíram dois modelos em uma escala de aproximadamente 1:10 do navio com base neste projeto, e Vosmer testou-os - um deles em um tanque de reboque e o outro em um túnel de vento - na Universidade de Southampton. O design naval se desenvolveu gradualmente ao longo de milhares de anos, por um processo às vezes difícil de tentativa e erro, e esses testes foram cruciais para o sucesso do projeto.
Os investigadores encontraram pontos fracos do projeto em duas áreas e os retificaram antes mesmo de zarpar. Em primeiro lugar, eles alteraram a forma da popa para que se curvasse menos abruptamente, reduzindo o arrasto e aumentando a eficiência. Segundo, a distância entre o mastro principal e o mastro de mezena (ou traseiro) foi aumentada, pois o projeto original teria resultado em uma vela de mezena "fazendo sombra", ou seja, bloqueando o vento da vela principal. Esta distância adicional permitiu que os tripulantes trabalhassem as duas velas em conjunto com mais eficiência.
A equipe escolhida a dedo de Vosmer, com construtores navais e carpinteiros altamente qualificados do Omã e da Índia e arqueólogos marítimos italianos e americanos, começaram a construir o navio em outubro de 2008, em Qantab, uma aldeia costeira do Omã localizada a sudeste de Muscat. Pelos próximos 17 meses, estes homens suportaram o calor intenso e enfrentaram sucessivos desafios de design enquanto trabalhavam para redescobrir e colocar em prática os conhecimentos e técnicas empregadas pelos construtores navais árabes do século IX. Dada a escassez de documentação, a construção do Jewel of Muscat exigiu um constante e desgastante ciclo de teorização, experimentação e análise.
A construção também precisou de 15 toneladas de Afzelia africana (colhidas em Gana, uma vez que a árvore não cresce mais na costa do Leste Africano), cinco toneladas de teca e várias toneladas de outros tipos de madeira. "Ficamos com admiração das pessoas que, mais de mil anos atrás, derrubaram, transportaram e processaram essas gigantescas árvores [Afzelia]", disse Vosmer. "A intensidade do trabalho foi impressionante." Para unir tudo isso, a equipe de construção usou 130 quilômetros (80 milhas) de cordas artesanais de fibra de coco, centenas de litros de óleo de coco e de tubarão para impermeabilizar as tábuas e a costura e uma quantidade impressionante de habilidade, determinação e entusiasmo.
|
Por razões de autenticidade, a tripulação usou tradicionais ferramentas de mão, incluindo serras, enxós, cinzéis, martelos e simples dispositivos de medição como o qalam, usado para marcar linhas paralelas nas tábuas. Entre as poucas concessões à tecnologia moderna estava o uso de furadeiras elétricas ao invés do tradicional migdah, as furadeiras-arco árabes movidas à mão: Estes últimos são dispositivos engenhosos e altamente eficientes, mas provaram ser 10 vezes mais lentos do que furadeiras elétricas. Dado que 37 mil buracos foram feitos no casco para acomodar a costura, e que os construtores estavam trabalhando com um prazo apertado para agarrar os ventos da monção de inverno, a decisão de ceder a isso foi compreensível.
Um desafio chave na construção que Vosmer e sua equipe tiveram de resolver foi a forma de moldar o tabuado. Como todos os barcos árabes de seu tempo, o casco da nau de Belitung foi construído primeiro. Isto é o oposto das técnicas de construção tradicionais do ocidente, em que a estrutura é construída primeiro e as pranchas são então dobradas e fixadas às vigas.
A abordagem de construir primeiramente o casco requer que as tábuas sejam entortadas ou curvadas antes de serem ligadas umas às outras. Depois de inúmeras experiências, a equipe construiu uma caixa de vapor de madeira que, em duas horas, deixou tábuas de cinco a sete metros de comprimento (16 1/2 a 23") flexíveis o suficiente para serem instaladas em seu lugar apropriado no casco. Os construtores tinham de realizar a tarefa rapidamente, pois a madeira permanecia flexível por apenas alguns minutos depois de sair da caixa. Apesar disso, o sistema funcionou, e à medida que cada nível de entabuamento era adicionado, emergia a forma graciosa do casco.
 |
Na hora das refeições, a tripulação de 17 homens de nove nações sentava-se no convés em torno de bandejas comunais e degustava uma comida simples, como arroz e peixe seco preparado em uma tradicional caixa de madeira para cozinhar, a matbakh.
|
Prender as tábuas era tão importante quanto moldá-las corretamente. Depois que os furos foram feitos nas tábuas, estas tinham que ser costuradas com precisão, pois a resistência do navio dependia inteiramente da integridade da costura. A inspeção dos destroços de Belitung revelou que uma linha de enchimento de fibra de coco foi adicionada a cada lado das costuras. Então, costurava-se com corda.
 |
 |
eric staples |
Topo: O alojamento permaneceu fiel aos padrões do século IX, com exceção de folhas de plástico colocadas para desviar vazamentos de água do mar. Acima: O Jewel foi construído tanto com um par de lemes laterais guiados por barras quanto um leme central movido a corda: No século IX, o primeiro representava um método tradicional, enquanto o último era uma nova tecnologia.
|
Primeiramente, este sistema pareceu deixar a costura mais vulnerável à abrasão. E, de fato, séculos mais tarde, construtores navais árabes haviam acabado com o enchimento exterior e, ao invés, rebaixaram as costuras externas para reduzir os riscos de abrasão e talvez reduzir o arrasto. Mas os construtores do Jewel of Muscat permaneceram fiéis ao método antigo, e rapidamente a equipe percebeu suas vantagens. Por exemplo, o enchimento exterior adicionava um amortecimento para a costura e esta mesma, quando saturada com óleo de peixe, fornecia uma barreira mais grossa contra a água do mar.
Os trabalhadores de cordas operavam em pares, um dentro do casco, outro fora. Usando as ferramentas mais simples, incluindo uma grande espicha de madeira e um martelo, além de pequenos plugues de madeira usados para segurar temporariamente os pontos no local, um homem passava as cordas através dos orifícios perfurados nas pranchas, aplicava uma certa quantidade de tensão e passava a corda sobre o enchimento e através do furo para o seu parceiro, que estava do outro lado. O nível de tensão da corda era crítico: demasiado, e iria arrebentar; muito pouco, o selamento entre as tábuas não teria efeito. Quando a costura estava completa, cada buraco foi cuidadosamente preenchido com um enchimento denso de fibra de coco, e depois selados com uma massa tradicional do Oceano Índico feita de giz, resina e óleo de peixe.
Depois que os desafios da reconstrução da nau de Belitung foram ultrapassados, a segunda fase do projeto começou. Em 16 de fevereiro de 2010, o Jewel of Muscat zarpou do porto Mutrah, em Muscat, rumo a mar aberto, com sua tripulação multinacional de 17 homens comandada pelo capitão omani Saleh al-Jabri. Durante nossa viagem lenta e quente para a Índia e além, gradualmente abraçamos o ritmo árduo mas simples da vida no mar.
Na hora das refeições, sentávamos no convés em torno de bandejas comunais e degustávamos uma comida simples, como arroz e peixe seco preparado em uma tradicional caixa de madeira para cozinhar, a matbakh. Quando os ventos diminuíam para perto de zero e a temperatura e umidade aumentavam, aprendemos a aceitar a nossa impotência diante da natureza. Nos maravilhamos com o majestoso pôr do sol e nos alegramos - como têm feito todos os marinheiros ao longo dos séculos - com a visão de golfinhos brincando em nossa proa. Também descobrimos que, apesar das diferenças de língua e cultura e das dificuldades devido ao espaço apertado, sono limitado e calor enervante, poderíamos unir-nos como uma equipe e trabalhar rumo a um objetivo comum. Éramos de nove nações — Índia, Sri Lanka, Malásia, Singapura, Itália, Austrália, EUA e Reino Unido, além de Omã — mas aprendemos a respeitar os talentos e experiências uns dos outros e a apreciar o papel que cada homem desempenhou no sucesso da viagem.
 |
Um membro da tripulação amarra baggywrinkles de proteção nas cordas de fibra de manilha onde possam causar buracos nas velas feitas de folhas de palmeira trançadas.
|
Entre as nossas diversas tarefas no mar, estava documentar a eficácia das características mais essenciais do barco. Por exemplo, um questão-chave que Vosmer e sua equipe enfrentaram durante o projeto do Jewel of Muscat foi qual o tipo de vela que deveria ser usada. O naufrágio de Belitung não deixou nenhuma evidência de aparelhos, de modo que Vosmer teve que consultar textos mais antigos e a iconografia em busca de pistas. Sua pesquisa sugere que o barco de Belitung tinha velas quadradas ao invés de triangulares. Isso contrariou a crença generalizada de que os árabes costumavam usar velas latinas ou settee - uma vela latina com uma pequena seção de seu canto frontal cortada - desde o século IV a.C.
No século XV d.C., Vosmer observou, o famoso marinheiro árabe Ahmad ibn Majid escreveu que a constelação de Pégaso, que tem a forma geral de um quadrado, assemelhava-se às proporções de uma vela do Oceano Índico. Além disso, numerosos desenhos de navios do Oceano Índico desde meados do século XII até o século XVI retratam navios árabes com velas quadradas. Notavelmente, vários mostram um cesto da gávea no topo tanto do mastro principal como do mastro de mezena, uma característica impossível em um navio com armação latina pois isto impediria a comutação de um lado do mastro para o outro enquanto o navio virava no vento.
Uma vez no mar, descobrimos o quão práticas as velas quadradas eram. Não só eram mais fáceis de lidar quando se virava o barco, mas - quando devidamente alinhadas - podíamos perto de 51 graus em relação ao vento aparente (a combinação entre o "vento real" e o vento criado pelo movimento para a frente do barco). Isto significa que, sob as condições corretas, podíamos "aproveitar" mais o vento e velejar com mais eficiência e rapidez do que o previsto - talvez uma das razões pelas quais as velas quadradas duraram tanto tempo a bordo de navios no Oceano Índico.
Outra questão crítica era em relação ao tipo de sistema de direção que seria utilizado no Jewel of Muscat. Um aspecto particularmente fascinante do barco de Belitung é que este foi construído durante um período de transição tecnológica em projetos marítimos. Por milênios antes do século IX, os navios utilizavam lemes de quarto - longos lemes fixados ao longo de cada lado do casco - para dirigir. Cada um destes era controlado por sua própria cana. Quando o navio estiver em uma virada a estibordo (isto é, com o vento vindo da direita), o timoneiro utiliza o leme de bordo e vice-versa. Porém em torno do século IX, os árabes começaram a montar um leme único e central na popa de seus navios.
 |
Um amanhecer espetacular ao largo da costa da Malásia anunciou a aproximação do Jewel ao Estreito de Malaca, o mais movimentado trecho de transporte marítimo do mundo. |
Marinheiros são compreensivelmente conservadores quando se trata de inovação, tendendo a ficar com aquilo que está bem testado, e a evidência textual e iconográfica mostra que a transição completa para este novo tipo de leme demorou cerca de três séculos. Então, os construtores equiparam o Jewel of Muscat com ambos os sistemas e, quando utilizados corretamente, eles se complementam muito bem - o que talvez explique a razão pela qual os antigos marinheiros esperaram tanto tempo antes de uma comutação total. Em ventos muito fracos, o leme central se mostrou mais eficaz, enquanto que em ventos leves a moderados o leme de quarto funcionou melhor. Em vento forte e mar agitado, muitas vezes utilizamos ambos os sistemas simultaneamente, com o leme médio oferecendo um grau adicional de controle.
Talvez a revelação técnica mais importante da viagem foi que, ao contrário de grande parte das primeiras observações europeias, barcos de prancha costuradas podem ser notavelmente resistentes. Escrevendo no século 15 sobre os navios costurados de Ormuz, na Pérsia, Marco Polo afirmou:
Os navios construídos em Ormus são da pior espécie, e perigosos para a navegação, expondo os comerciantes e outros que os utilizam a grandes riscos. Seus defeitos originam a partir da circunstância de que pregos não são empregados em sua construção... [S]ão amarrados, ou melhor, costurados, com uma espécie de corda de fio descascado feito com a casca da castanha da Índia [coco]….
Nossa experiência contrastou claramente com esta afirmação. Na verdade, o Jewel of Muscat provou ser mais forte estruturalmente do que aquilo que foi antecipado por seus projetistas. Suportou inúmeras tempestades durante a viagem - especialmente na Baía de Bengala -, mas não sofreu nenhum dano em seu casco. Também foi submetido às indignidades modernas de ser rebocado para dentro e fora de portos, chocado com e empurrado por rebocadores pesados nas docas e expostos a poluentes em portos congestionados; ainda assim, o navio continuou incólume.
 |
Apesar de nosso empenho em manter o máximo de autenticidade histórica durante a viagem do Jewel assim como a aplicada durante a sua construção, fomos obrigados por razões de segurança a navegar com a maior precisão proporcionada por um gps—usando satélites ao invés de estrelas para a direção. Este dispositivo requer pouca habilidade para usar, e constantemente ficamos maravilhados pela forma como os primeiros marinheiros navegavam tão bem sem ele. Marinheiros árabes começaram a usar uma bússola no século XIII, pouco tempo depois de ter se tornado um equipamento padrão em navios ocidentais. Antes disso, eles usavam um instrumento simples mas engenhoso chamado kamal—basicamente, um retângulo de madeira ao qual um barbante com nós fixos é amarrado. Segurado com o braço esticado, com sua borda inferior no horizonte, o kamal era usado para medir a altitude de uma estrela (especialmente a Estrela Polar) a partir do horizonte e, assim, determinar a latitude. Eles não tinham, no entanto, um método confiável para determinar a latitude.
Os notáveis textos dos séculos XV e XVI dos grandes navegadores árabes Ibn Majid e Sulaiman al-Mahri explicam como os antigos marinheiros observavam o sol, as correntes, o vento, a cor do mar e a vida marinha para ajudá-los a navegar durante dia. Eles também revelam que o conhecimento espantosamente detalhado dos navegadores sobre os céus era seu principal meio de navegação durante a noite. O Dr. Eric Staples, um historiador marítimo americano e membro da tripulação, estudou estes documentos antes e durante a nossa viagem. Para aprender o máximo possível sobre o uso do kamal, e comparar as medidas modernas com aquelas encontradas nos textos antigos, ele empregou várias versões do dispositivo para criar um banco de dados com as altitudes de 14 estrelas e constelações tradicionalmente utilizadas pelos navegadores árabes.
 |
138 dias após partir de Omã, o Jewel of Muscat chegou em Singapura, onde foi doado para a exposição permanente do Museu Marítimo Experiencial. |
Usar um kamal requer uma prática considerável, mesmo sob condições ideais, mas não funciona em noites nubladas ou durante tempestades. Felizmente, nossa viagem prosseguiu mais pacificamente após as tempestades da Baía de Bengala, portanto fomos capazes de fazer leituras das estrelas de uma maneira mais regular. Dia após dia, navegávamos para o leste, em direção a Penang, Malásia, nossa penúltima parada, e então para o sul através do Estreito de Malaca - tomando cuidado para evitar os piratas de Sumatra e os superpetroleiros que percorrem as mais movimentadas vias de navegação do mundo.
Finalmente, 138 dias após partirmos, chegamos ao porto de Singapura para uma recepção arrebatadora por milhares de simpatizantes, colegas e amigos, seguido de recepções realizadas por dignatários de Omã e de Singapura e a entrega oficial do Jewel of Muscat pelo capitão al-Jabri para S. R. Nathan, presidente de Singapura.
"Esta viagem foi o meu maior desafio em 25 anos no mar, mas também foi incrivelmente recompensadora em termos daquilo que aprendemos sobre a história marítima árabe", disse o capitão al-Jabri.
Em meio a todas as tarefas envolvidas na preparação do navio para a chegada, não havia tempo para refletir sobre o significado da viagem. Foi uma grande aventura, e aprendemos muito sobre antigos navios e navegação árabes. Mas, acima de tudo, nossas experiências despertaram um respeito intenso para com os conhecimentos, habilidades e coragem dos antigos marinheiros árabes cujas trilhas havíamos navegado.
No século IX, sem uma bússola, mas com uma compreensão conquistada às penas sobre o mar, os ventos e as estrelas, eles atravessavam a imensidão do Oceano Índico, unindo povos e nações no comércio, na fé e na amizade. Esse foi o verdadeiro legado do Jewel of Muscat, um que continuará a compartilhar com seus visitantes por gerações e gerações.
 |
Robert Jackson (jacksonr546@gmail.com) ensina história na American International School de Muscat, no Omã. Ele é o autor de At Empire's Edge: Exploring Rome's Egyptian Frontier (Yale, 2002). Sua pesquisa atual enfoca o início da história do comércio no oeste do Oceano Índico. |
Feedbacks de traduções são bem-vindos
Todos os comentários dos leitores que possam ajudar nossos linguistas a melhorarem suas traduções são muito bem-vindos. Envie seus comentários a saworld@aramcoservices.com. Na linha de assunto, escreva “Translations feedback”, em inglês. Em função do volume de comentários, é possível que nem todos sejam respondidos.
--Os Editores |